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quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

Rogério Magro
Muito Perto da Morte


Acabados de chegar à Vila de Gago Coutinho, hoje Lumbala N’Guimbo, uma das primeiras operações do pelotão a que eu pertencia, foi a de ir efectuar protecção à JAEA (Junta Autónoma de Estradas de Angola) cuja equipa era chefiada, naquela zona, pelo célebre “Samuapa” encarregado de equipa da JAEA, pessoa altamente disciplinadora e muito temida por quem com ele trabalhava.
A equipa do “Samuapa” estava a reparar uma ponte de madeira que tinha sido parcialmente queimada pelo inimigo (MPLA).

Para os militares, o serviço de protecção aos trabalhos da JAEA era considerado como “um certo repouso”, pois limitava-se a que, durante as horas de trabalho, estivessem nas orlas da mata a fazer a respectiva segurança.

O problema principal era o do alojamento que, na maioria das vezes, era bastante precário, pois, ou era em casas abandonadas e em ruínas, ou em tendas, como foi neste caso.

Juntamente com o pelotão estava, como reforço, um grupo de uma dúzia de “Flechas” (como era designada a tropa africana recuperada ao IN) que se encontrava igualmente sediada em Gago Coutinho e cuja actividade era coordenada pela Pide.

As obras de restauração da ponte decorriam com alguma normalidade.

Os estragos eram razoáveis e quando queimaram a ponte, os “tipos” deixaram lá uma mensagem escrita em papel, a qual dizia mais ou menos isto: “estas pontes de madeira já não se usam, substituam-na por uma de betão” (além de “chatos” os “tipos” eram exigentes!).

Estava tudo a andar nos conformes até que num belo dia, ao anoitecer e quando o pessoal já se estava a preparar para a segurança dessa noite com o gerador da JAEA ligado para iluminar o acampamento, começamos a ouvir um barulho de um helicóptero no ar.

Desligou-se o gerador, ficou tudo às escuras e o héli começou a andar ali às voltas no ar com todo o pessoal de G3 apontada ao héli, até que se ligou novamente o gerador e o alferes ordenou aos condutores para ligarem os faróis dos Unimog’s e apontarem as luzes para a picada, onde o héli acabou por aterrar.

Nós sabíamos que os helicópteros estavam proibidos de levantarem voo a partir das cinco horas da tarde, já que não possuíam instrumentos de navegação nocturna, nem as pistas existentes no mato tinham iluminação.

Aconteceu que o alferes-piloto levantou voo, para proceder à evacuação de dois soldados dos comandos, já depois da hora permitida.

Anoiteceu, perdeu-se, já estava quase sem combustível e foi um milagre ter encontrado ali o nosso acampamento, pois, caso contrário, teria que aterrar no mato e lá passar a noite.
Esta situação causou-nos alguma perplexidade, à mistura com um grande susto, já que era completamente inesperado ver um “bicho” daqueles voar à noite e, por momentos, chegamos a pensar que íamos ser atacados pelo helicóptero.

Para o piloto, cabo especialista e para os dois feridos que, por sinal, até nem tinham nada de grave, foi uma sorte dos diabos, pois a rota para Gago Coutinho nada tinha a ver com o local onde nos encontraram.

O enfermeiro lá deu uma ajuda aos feridos e o alferes-piloto mais o cabo especialista apanharam uma grande “moca” pois, segundo eles, não se podiam ir deitar sem comemorarem a nossa inesperada recepção.

O radiotelegrafista mandou uma mensagem informando que o héli estava estacionado no nosso acampamento, o qual ficava a cerca de 70 km de Gago Coutinho, local onde se encontrava a base aérea e o comando militar, tendo igualmente solicitado o envio urgente de gasolina para o helicóptero.

No dia seguinte, após ter chegado a coluna com o combustível, o héli lá regressou a Gago Coutinho, sem que antes o piloto se viesse despedir muito efusivamente de todos nós.

As obras de recuperação da ponte continuavam em bom ritmo, até que a chuva apareceu, os trabalhos foram interrompidos e parte do pessoal recolheu às tendas.
Eu também fui para a minha tenda e deitei-me para ler uma revista das selecções Reader’s Digest bastante antiga que alguém me tinha feito chegar às mãos.
Estava eu deitado com as cartucheiras a fazerem de almofada e, só por um mero acaso, não estava com a cabeça encostada ao pano da tenda porque este estava molhado, quando, volvidos alguns minutos, ouço um tiro, mas não liguei grande importância já que era muito frequente haver um ou outro disparo de arma, por descuido de algum militar. No entanto, começo a ouvir vozes que dizem haver um ferido e, logo de seguida, aparece-me o Furriel Frota à entrada da minha tenda e pergunta:
- “Ó Magro, estás vivo?!”
Eu, que entretanto já me tinha sentado, pergunto sobressaltado:
- “Ó pá, o que foi?! O que é que se passa?!”
Responde-me o Frota:
- “Olha para trás, para o pano da tenda!”

Olhei e vi que a tenda estava furada pelo projéctil do tiro que se tinha ouvido no acampamento, havia alguns segundos atrás.

Continuou o Frota:
- “Um ‘Flecha’, na tenda ao lado da nossa, estava sentado com a FBP(1) em cima dos joelhos e, talvez por descuido, a arma disparou e a bala atravessou a nossa tenda e foi atingir um outro tipo dos ‘Flechas’ que se encontrava na tenda a seguir e que dormia ao contrário, isto é: com a cabeça para o lado dos pés. Por isso também teve sorte, levou um tiro num pé.”

Eu voltei-me novamente para trás a observar o furo na tenda provocado pelo projéctil, o qual estava a centímetros das cartucheiras que me serviram de almofada e onde eu tinha a cabeça.
Fiquei ali uns minutos a reflectir e a falar com os meus botões:
- “Ias ‘lerpando’ (2) deitado, com um tiro na ‘moleirinha’ e a ler umas selecções muito antigas do Reader’s Digest!”

Entretanto, lá chegou o helicóptero que evacuou o ‘Flecha’ ferido com o tiro no pé.

A ponte, passados mais uns dias, ficou reparada, mas creio que mais tarde voltou a ser queimada, mas já não me calhou a mim ter de ir para lá novamente.

A cada passo, nos encontros de almoços anuais da tropa, lá me vêm alguns soldados recordar, uns da emboscada, outro do susto do helicóptero e outros a lembrarem-se e a dizer-me:
- “Eh pá, e quando você ia ‘lerpando’(2) deitado a ler?!”

--- xxx ---
(1) – A Pistola-metralhadora FBP foi projectada no final da década de 1940 por Gonçalves Cardoso, Major de Artilharia do Exército Português e foi produzida pela Fábrica de Braço de Prata (FBP) em Lisboa, com cuja sigla foi baptizada. Foi muito utilizada em África, no início das guerras coloniais, mas, por ser uma arma pouco confiável (em caso de queda, podia dar-se um disparo), deixou de ser usada em termos operacionais.
(2) - “Lerpar”, termo usado no jogo da Lerpa, muito praticado pelos militares, jogo a dinheiro, muito simples no qual era tirada uma carta que era o trunfo, cada jogador tinha três cartas e quem fosse a jogo e não fizesse nenhuma vaza, “lerpava” e colocava na mesa o valor correspondente ao dinheiro em jogo que se encontrava na mesa.







Rogério Magro
Operação Lumai


Nunca percebi porquê, mas era normalmente aos fins-de-semana que nos eram comunicadas as operações em que iríamos tomar parte.
Para quem está no mato, os dias são todos iguais e então porquê comunicar nos dias de sábado ou domingo a preparação para uma operação militar?!
Nunca o soube, mas mais uma vez assim aconteceu.

Era domingo, o Alferes Castro transmitiu-me que no dia seguinte o pelotão partiria para mais uma operação sem adiantar mais pormenores, dizendo-me simplesmente que era uma operação com a duração de quatro dias e para proceder à requisição de rações de combate para quatro dias.

Pela manhã do dia seguinte partiu o pelotão em Unimog’s e, percorridos uns 90 km, estacionamos no quartel dos fuzileiros especiais que estavam aquartelados na margem do rio Lungué Bungo, junto a uma ponte sobre aquele rio que, segundo constava, o seu projecto era da autoria do famoso engenheiro de pontes Edgar Cardoso.


Ficamos lá o resto do dia e aí dormimos, tendo à noite sido informado que eu com a minha secção de combate e a do Furriel Santos partiríamos de bote com os fuzileiros que nos transportariam por rio e nos deixariam perto do Lumai, local da operação que iríamos efectuar.

O Alferes Castro seguiria no dia seguinte, já que os fuzileiros não podiam dispor dos botes suficientes para nos transportar a todos de uma só vez.

Aproveitei nessa noite para confraternizar com um “fuzo” que era do Porto e que eu conhecia bem das jogatanas de bola que fazíamos no célebre campo das “caveiras” como lhe chamávamos e que ficava, ao tempo, junto ao cemitério de Agramonte. Recordo-me de me ter encontrado com esse fuzileiro por diversas vezes, quer quando passava pelo Lucusse, quer quando a tropa parava no seu quartel. Ele foi a primeira pessoa que, mal eu desembarquei do comboio no Luso, proveniente de Nova Lisboa, me abordou gritando: “- Ó Barrigana!”

Dei-lhe um abraço e disse-lhe que ia para o Lucusse.
Diz-me ele: “- é pá fica perto de onde eu estou!” (por mais que me esforce, não me consigo recordar do seu nome).

Voltando ao tema da operação: pela manhã do dia seguinte partimos em cinco botes, cada bote levava quatro militares e um fuzileiro que tripulava o bote. Começou a chover e a chuva durou quase todo o dia, o que não era habitual naquelas paragens.

Como era a primeira vez que fazia, de bote, uma “excursão” rio acima e ainda para mais num rio bastante sinuoso que, várias vezes nos obrigou a entrar pela margem do rio adentro, já que com a velocidade do bote o fuzileiro não tinha tempo de fazer a curva para, logo de seguida, entrarmos noutra curva do rio.

Enfim…, como íamos já todos encharcados pela chuva era, mais banho, menos banho. Lembro-me muito bem de ter perguntado ao fuzileiro de como procederíamos caso fossemos atacados da margem do rio e responde-me ele:
“- Se, entretanto, com o tiroteio o bote não afundar, vamos direitos ao local de onde vêm os tiros e desembarcamos, ou você quer atirar-se fardado ao rio e ir à pesca submarina com a G3?”
Claro que me calei e comecei a meditar sobre a possibilidade de sermos atacados pela margem do rio.

Continuava a chover e já não havia cigarros nem o isqueiro acendia até que, cerca das duas da tarde, os botes pararam e os fuzileiros indicaram-nos o local de desembarque.
Desembarcamos e os “fuzos” partiram de regresso ao seu quartel.

Ficamos ali na mata junto a um morro e foi um problema conseguir transportar as caixas das rações de combate, já que as mesmas se encontravam todas desfeitas devido á chuva.

Entramos na mata (eu não sabia se estávamos longe ou perto da povoação) com as caixas das rações desfeitas e alagados até aos ossos.

Como era eu quem comandava a tropa e achava praticamente impossível fazermos uma progressão face ao problema do transporte das rações de combate, chamei o Furriel Santos e, após uma pequena troca de impressões, ele ofereceu-se para, com a sua secção, tentar chegar à povoação e arranjar maneira de nos virem ajudar a transportar as rações.
Informei-o de que, segundo indicação dos fuzileiros, a povoação ficaria para a direita do local onde nos encontrávamos e que lá se encontrava uma guarnição da polícia composta de quatro homens. O Santos lá arrancou com o seu pessoal e eu disse-lhe:
“- Ó pá segue em frente a ver se encontras a picada ou algum trilho e depois segue pela direita.”

Eu fiquei com algum receio de ele se perder e, entretanto, ficar noite e termos de dormir ali naquele sítio e todos alagados.

Passada aí cerca de uma hora, começamos a ouvir o barulho do motor de uma viatura que, à medida que se aproximava do local onde estávamos, se vinha cada vez a ouvir mais intensamente.
Avancei em frente com parte do meu pessoal e o restante ficou junto às rações e aí a uns 500 a 600 metros estávamos junto à picada e, passado algum tempo, apareceu o Santos dentro de um Land Rover que era conduzido pelo comerciante residente na povoação, o qual se disponibilizou a nos prestar auxílio, já que a polícia não tinha viatura.

Carregamos para o Land Rover as rações de combate e lá seguimos para a povoação que se situava a cerca de três Km do local onde tínhamos estacionado.

Fomos recebidos pelo Sub-Chefe da polícia que comandava a guarnição e o mesmo já tinha dado instruções para acender o forno de cozer o pão que lá existia e foi a maneira do pessoal secar as fardas rapidamente.

Na povoação existia uma boa e grande casa que teria sido onde, em tempos, existiu um Posto Administrativo e onde teria habitado o respectivo Chefe de Posto. A casa encontrava-se abandonada e uma parte dela tinha sido ocupada pelos quatro polícias.
Ficamos instalados nessa casa.

O comerciante era um homem já maduro aí de uns sessenta anos, natural da Madeira, mas com alguns anos de Lisboa como taxista, segundo nos contou. Era o único branco que lá vivia há já muitos anos, de seu nome Aguiar, com o qual criamos, nos dias que ali permanecemos, uma boa amizade.

A população nativa andaria aí à volta de cerca de 2.000 pessoas.

Depois de ter instalado o pessoal e distribuído as tarefas inerentes à segurança, ficamos a conversar com o sub-chefe da polícia que estava em sobressalto, pois tinha informação que iria haver uma reunião na povoação com elementos com algum peso no MPLA.

Após ir verificar a segurança que tinha montado à casa, já que a polícia só tinha uma sentinela que era dividida por três turnos durante a noite e o sub-chefe só estava de serviço durante o dia, lá me fui deitar no chão da sala, mas já com a roupa toda seca, pois o forno de cozer o pão deu uma grande ajuda e tivemos também o privilégio de comer pão quente que os polícias amavelmente cozeram para a tropa.

No dia seguinte, ao fim da manhã, apareceu o Alferes Castro com o resto da tropa, a qual veio logo direito à povoação porque os fuzileiros os deixaram no local do rio com acesso à povoação e não a três ou quatro Km como nos tinham deixado a nós no dia anterior.

Feitas as apresentações ao sub-chefe da polícia e ao Sr. Aguiar a, tropa recém chegada instalou-se no local onde eu a tinha instalado no dia anterior, embora repartida por outras divisões, já que a casa era grande e havia espaço suficiente para todos.

Os polícias voltaram a cozer mais pão, o que muito nos ajudava a comer as rações de combate.

No dia seguinte, a meio da tarde, o Alferes Castro reuniu com os três furriéis e informou que naquela noite iríamos fazer um envolvimento à povoação à excepção do trilho de acesso à mesma e que já tinha conhecimento do local onde se iria efectuar a reunião com os quadros do MPLA e que depois daria ordem para o assalto ao local da reunião.

Correu tudo muito bem, foi efectuado o assalto ao local da reunião, não foi dado um único tiro, até porque a visibilidade era diminuta, pois só havia uma pequena fogueira dentro do “kimbo” onde decorria a reunião, tendo sido feitos vinte e um prisioneiros, os quais foram transportados para a sala da casa onde nos encontrávamos.

Foram efectuados alguns interrogatórios aos prisioneiros, ficando estes todos presos na sala, vigiados dia e noite por alguns soldados.

Diariamente, uma vez de manhã e outra de tarde, os prisioneiros eram levados em fila indiana ao mato para fazerem as suas necessidades fisiológicas.

Aconteceu que, em determinado dia, logo ao amanhecer, vimos entrar pela povoação um nativo amarrado pelas mãos com umas lianas e logo atrás dele outro negro com uma zagaia numa das mãos.
O homem que trazia o prisioneiro chegou junto do alferes e disse-lhe:
“- Eu sou português, fui tropa nos Luanda. Este tipo fugiu, eu vi e fui atrás dele com a zagaia e prendi-o, bandido não pode fugir.”

Este homem de seu nome João, vivia na aldeia e andou uma tarde e uma noite no encalço do fugitivo e prendeu-o. Eu virei-me para o alferes e disse-lhe:
“- Este homem merecia uma recompensa.”
“- É verdade diz o alferes, mas não temos nada para lhe dar!
Diz logo o sub-chefe da policia:
“- Eu tenho ali um garrafão de vinho e damos-lhe um púcaro que o homem bem merece!”

E assim foi, o sub-chefe encheu o púcaro que era para aí de meio litro e o nosso homem bebeu-o de uma só vez!
“- Vai outro?” Perguntei eu.
“- Vai mesmo outro”, respondeu ele e emborcou mais meio litro de uma só vez, e o João lá foi para a sua palhota, mas já ia a marchar com o passo trocado.

No dia seguinte chegou uma coluna militar do Luso que transportou os prisioneiros.

Nós já tínhamos cumprido a nossa missão que era de quatro dias, mas já tinham passado oito e ainda ali nos encontrávamos em situação cada vez mais precária:
- tinham acabado as rações de combate;
- os polícias já não nos podiam cozer mais pão porque senão ficavam eles à rasca;
- iam-nos desenrascando umas couves da horta que tinham plantado, com as quais o pessoal ia improvisando umas sopas de água com couves;
- o Sr.Aguiar ia fiando o pouco que tinha e eu ainda fui convidado por ele para almoçar e recordo-me que comi um arroz de cogumelos silvestres feito por ele, coisa tão boa que nunca mais me esqueci de tal.

A situação piorava de dia para dia, pois era raro o dia em que não havia problemas com a povoação devido aos soldados andarem atrás das galinhas que os nativos, como é óbvio, escondiam e que os soldados, com fome, queriam “palmar”.

Eu, entretanto, não me sentia bem indo almoçar à casa do Aguiar, até porque ele só me convidava a mim, talvez porque lhe causei uma impressão marcante, julgo eu, quando ele nos foi buscar ao mato e observou a maneira como eu dirigi e consegui pôr o pessoal a secar-se dois de cada vez, no forno de cozer o pão, enquanto os outros faziam a segurança e da maneira como eu acalmei o sub-chefe que estava todo acagaçado de medo à conta das informações que lhe tinham chegado.

Como não me sentia muito confortável com aquela situação dos almoços do Sr. Aguiar, expliquei-lhe os motivos e ele compreendeu e respondeu-me que nem que quisesse, também já não tinha possibilidade de convidar mais alguém.

Fiquei sempre muito reconhecido ao Sr. Aguiar e fiquei muito chocado quando, passados alguns meses, o encontrei no Luso, numa esplanada a beber uma cerveja e lhe perguntei se a tropa já lhe tinha pago o que ele tinha cedido fiado e ele respondeu-me que não.

Ainda interpelei o Alferes sobre este caso, mas ele não deu muita importância ao assunto, respondendo eu que muito lamentava tal facto.

Já estávamos naquela situação havia catorze dias, portanto havia já dez dias que estávamos a sobreviver com mangas (algumas ainda verdes) apanhadas das árvores, já não havia frangos na povoação, desapareceram; uns roubados e outros escondidos a sete chaves pelos seus donos, alguns soldados começaram também a roubar mandioca e a tentar cozinhá-la e outros a comê-la crua.
Então fui ter com o Alferes e disse-lhe:
“- Meu Alferes, isto não pode continuar assim! Não vai demorar muito tempo para o pessoal começar aos tiros dentro da povoação para roubar para comer e é melhor o meu Alferes ir ao rádio da polícia e mandar uma mensagem urgente para nos virem buscar, senão isto vai acabar mal!”

Ele lá foi falar com o sub-chefe e veio-me transmitir que mandou uma mensagem extremamente dura para o Comando. Deu resultado a mensagem e fomos informados que no dia seguinte os fuzileiros nos iriam buscar a todos.

A meio da manhã do dia seguinte lá apareceram os fuzileiros com os botes, só que o número dos botes era o mesmo, pelo que cada bote levava mais dois militares e, nalguns casos mais três, do que seria normal.

Então aconteceu o seguinte; os fuzileiros começaram a aperceber-se de que o excessivo consumo de gasolina de cada bote, dado o peso a mais que levavam, iria resultar que não houvesse combustível suficiente para chegarmos ao destino.

Esta situação começou a verificar-se quando o primeiro bote ficou sem gasolina e teve que utilizar o jerrican de reserva que cada bote levava, situação esta que se veio a verificar também com os demais botes até que, a páginas tantas, aparece um bote cujo fuzileiro dá instruções para que cada bote entregue a gasolina do seu depósito para possibilitar que dois botes cheguem ao quartel dos fuzileiros e venham trazer reserva de gasolina, e assim se fez.

Dois botes partiram com a gasolina existente e os restantes ficaram à deriva no rio Lungué Bungo.
Aí eu lembrei-me do que me tinha dito o “fuzo” caso fôssemos atacados da margem, pois agora com os botes à deriva era mesmo só remar com as G3 para chegarmos à margem e foi isso que eu disse meio a brincar ao fuzileiro que conduzia o bote e, pelo sorriso que fez, penso que não gostou nada da conversa.

O pessoal dos outros botes não ouviu o meu desabafo, mas a verdade é que passados alguns minutos começaram a atirar granadas para o meio do rio e rapidamente o rio ficou cheio de peixes mortos a boiar.
Diz-me o fuzileiro que conduzia o bote onde eu ia:
“Os ‘fuzos’, quando alguma coisa corre mal, é assim que festejam!”
Disse eu: “- Já percebi.”

Depois de cerca de uma hora à deriva, mais coisa menos coisa, lá apareceram os botes com a reserva de gasolina e lá seguimos sem mais problemas até ao quartel dos fuzileiros, onde chegamos muito perto de anoitecer.

No dia seguinte lá seguimos de unimog para o Lucusse, regressados de uma operação de quatro dias que demorou catorze.

Mais tarde fomos informados de que, efectivamente, tínhamos capturado dois importantes comissários políticos do MPLA.


1 – Lumbala
2 – Sessa
3 - Lucusse






quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

Rogério Magro
Batatas cozidas, ou puré, com bacalhau?!


As atribulações do responsável improvisado pelo rancho, continuaram.
Imediatamente após o episódio dos frangos com o irmão António da missão católica, o nosso Furriel vaguemestre em exercício muito precário (a arrecadação dos géneros era uma GMC com capota) que tinha de ter guarda, caso contrário lá iam os chouriços e tudo o resto.
Face ao fracasso da "operação frangos", comecei a magicar a maneira de arranjar uma refeição melhorada e, após muito matutar, resolvi ir à procura pelas sanzalas (correndo alguns riscos) tentando comprar pelo menos dois cabritos.
Ao fim de muito esforço, de alguns Kms e de algum perigo, lá consegui arranjar dois cabritos e ordenei ao cozinheiro que no dia seguinte fizesse uma caldeirada de cabrito.
Foi um esforço notável, mas o contentamento do pessoal e os elogios do Capitão compensaram o esforço.
Numa ida à cidade de Henrique Carvalho (Saurimo) consegui no quartel do Batalhão arranjar algum bacalhau, o que me deu a possibilidade de ir melhorando a ementa.
Foi o bacalhau posto de molho (com sentinela a guardá-lo) e dei instruções para que fosse cozinhado o famoso prato de batatas cozidas com bacalhau.
Tudo a correr "nos conformes", o tempo foi passando e constatei que o rancho estava um pouco atrasado nesse dia.
O Capitão mandou-me chamar e interpelou-me:
- "Ouça lá, hoje não se come?!" Eu respondi:
- "Está um pouco atrasado mas já vai sair."
Dirijo-me para o local da cozinha improvisada e dou com o cozinheiro, também ele improvisado, Mata de seu nome, e encontro-o numa discussão muito acesa com o seu camarada Cesário a pontos de quase chegarem a "vias de facto". Acabo com a discussão e junto do Mata berrei-lhe e disse-lhe:
- "Ó pá, acaba com essa merda, o Capitão já me chamou a atenção! O rancho já está com um atraso de meia hora!" (o pessoal já fazia fila no local habitual onde eram servidas as refeições quentes).
"As batatas já estão cozidas", respondeu o Mata, "vou coar a água já".
O Mata estava muito nervoso e ao coar a água do panelão das batatas, grande parte delas foram parar ao chão juntamente com a água.
"Bonito serviço, só me faltava esta, as batatas no chão cheias de terra! E agora meu cara de car#@§€!, meu grande sacana como vamos sair desta?!" gritava eu.
O Mata diz-me:
- "Eu vou já cozer mais batatas!"
"Tu vais o quê?! Traz-me já essa merda do panelão ali para dentro da arrecadação!"
O Mata assim fez.
"Onde tens a colher de pau?! Vai buscá-la já!"
Trouxe a colher de pau e eu ordenei-lhe: - "Pega nessa merda e esmaga-me as batatas, esmaga mais..., mais..., mais!"
"Já chega" - disse, por fim.
O Mata olhava para mim sem perceber nada.
"Leva agora o panelão para a cozinha, Ok?! Agora vai buscar o prato para levar a comida a provar ao Capitão" (Antes de servir o rancho é necessário que este seja autorizado pelo oficial de serviço). Ele lá levou o prato de batatas com bacalhau cozido e regado com azeite.
Tal como eu já estava à espera, o Capitão mandou-me chamar. Mal eu chego junto dele, dirige-se-me em voz alta:
- "Ouça lá, a ementa é batatas com bacalhau, ou puré com bacalhau?" Eu respondi-lhe com toda a serenidade:
- "Meu Capitão, as batatas foram fornecidas pelos serviços de Intendência do quartel em Henrique de Carvalho, não tenho culpa alguma da sua qualidade. Estou de acordo que estas batatas eram boas para a sopa ou para puré, mas não tenho culpa alguma da sua qualidade e é o que há, na cozedura esfarelaram todas".
- "Mande lá servir o rancho que já são horas" - respondeu o Capitão.
Finda a refeição constatei que ainda sobraram batatas no panelão.
Moral da estória; com serenidade e imaginação, os grandes problemas acabam sempre por se resolver ainda que muitas das vezes nos deixem à beira de um ataque de nervos, como foi o caso.
Quanto ao Mata, sempre que nos encontramos nos almoços anuais da tropa leva sempre com este episódio e atira as culpas para o seu camarada Cesário que o desorientou naquela altura, o que me ia arranjando um sarilho dos diabos, pois se havia pessoal à espera do rancho, era nesse dia.
Batatas cozidas com bacalhau, no mato, era um luxo e, mesmo sendo quase puré, também marchou, ai não que não marchou!






segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

Rogério Magro
Os 48 Dias de Lumbala


Lumbala Novo e Lumbala Velho ficavam nas margens do rio Zambeze, onde muitos soldados aprenderam a nadar e alguns correram o risco de lá ficar.
No Lumbala Velho estavam os fuzileiros que nos transportavam de uma margem para a outra.

Havia também uma jangada que levava as viaturas militares e uma lancha de desembarque ancorada no meio do rio.
Sempre que não andávamos em operações albergávamo-nos numa Companhia de Infantaria que estava aquartelada no Lumbala Novo e que tinha grandes dificuldades de abastecimento.
Foram 48 dias a comer rações de combate!
O pessoal da "estalagem" nem uma cebola nos cedia (não tinham!) para comermos com o atum da ração.
Dada a quantidade de dias a comer rações de combate, quando chegava a hora de ”arrear a bosta” era um problema!
Aquilo não era bosta, era cimento armado e o pessoal via-se aflito!
O médico detectou que um militar estava com hepatite, solicitou a sua evacuação e mandou proibir o consumo de qualquer bebida alcoólica.
Como, além de passarmos fome, ainda nos tiravam as "cervejolas", resolvemos ir ao meio do rio Zambeze ter com dois marinheiros que estavam na lancha de desembarque e que tinham cerveja a bordo.
Como eram de outra guerra, não chegou lá a proibição e como, para além disso, eram só dois e estavam de relações cortadas, os nossos pedidos de asilo para as "cervejolas" eram sempre bem-recebidos.

Como havia gente que sabia que estávamos ali em situação difícil, alguém foi à caça e trouxeram-nos duas cabras do mato que, após termos conseguido "desencantar" uns quilos de batatas, alguém fez uma espécie de caldeirada.

Durante a noite foi uma correria desalmada, pois toda a gente passava a correr com as calças na mão.
Eu acordei com o alvoroço e estava admirado de não me suceder nada até que, já com o dia a nascer, lá vou eu a correr e a desapertar as calças e lá consegui chegar junto a um embondeiro para "arrear a giga".
O pior é que o dia já estava a começar a nascer e os mosquitos já tinham acordado e saí de lá com a "bunda" toda picada, minha nossa!

Resumindo: As cabras do mato, depois de mortas, devem ter andado muito tempo pelo mato até chegarem ao destino (gandas cabras!) e, então, causaram uma diarreia geral na companhia que ficou com saudades das rações de combate!

As operações foram várias. Já não me recordo dos nomes dos locais por onde andamos, mas recordo-me que fomos a um aquartelamento, junto à fronteira com a Zâmbia, que só era abastecido por héli e que para andarmos 53 kms com as viaturas, demoramos dois dias para lá e outros dois para cá, dada a quantidade enorme de pontes e pontões que se encontravam destruídos.

Havia alturas em que a farda parecia de plástico e eu afirmava que era à prova de bala e vi pela 1ª.vez, ao vivo e a cores, as meias ficarem de pé sozinhas, sem qualquer suporte.

No Zambeze, todos nus, lavávamos as fardas no rio, fazia lembrar a praia do Meco.







domingo, 20 de janeiro de 2013

Rogério Magro
Apresentação


Rogério Alberto Valente Magro foi, dos seis irmãos que prestaram serviço nas ex-Provincias Ultramarinas o que, certamente, teve o percurso militar mais duro, com maiores privações e que enfrentou maiores perigos.

Tendo nascido a 09/03/1944 no Sabugal, iniciou em 1965 o serviço militar obrigatório no RI 5, Caldas da Rainha, a fim de frequentar o 1º ciclo do CSM (Curso de Sargentos Milicianos) após o que frequentou o 2º ciclo no CISMI (Curso de Sargentos Milicianos de Infantaria) no Quartel da Atalaia, em Tavira a fim de lhe ser dada a formação de Atirador de Infantaria.

Quartel da Atalaia, em Tavira, onde funcionou o CISMI
Foto: Wikipédia


Recorda-se que, naquela época, a viagem de Tavira ao Porto em autocarro, demoraria, seguramente, mais de 12 horas o que somadas a outras 12 para o regresso, ficava um dia completo gasto em viagens fazendo com que muitos dos militares do Norte, a receber a instrução em Tavira, raras vezes viessem passar o fim de semana a casa.

Mobilizado para Angola em 1967, participou em várias operações na Zona Militar Leste, tendo-se salientado na reacção a uma emboscada do IN, facto que mereceu do Comandante da ZML o louvor que a seguir se transcreve:

Transcrição do Louvor registado na Caderneta Militar do ex-Fur. Milº Rogério Alberto Valente Magro

Louvado por sua Exª. o Comandante da ZML(*), por proposta do Sr.Comandante do B.Caç. 1920, pelas qualidades militares evidenciadas durante cerca de dois anos de actividade operacional sendo de salientar uma emboscada do IN a uma coluna das nossas NT de que fazia parte, em que tendo ficado ferido o Comandante da coluna, comandou a reacção fazendo uma perseguição de alguns quilómetros ao grupo IN tendo da perseguição resultado a captura de um elemento IN e armamento. Além desta acção mostrou um espírito aguerrido, sangue frio, moral elevado e serenidade debaixo de fogo.

(*) - Zona Militar Leste

Comentário:

Nestas alturas não dá para pensar muito. Com o tiroteio e com feridos, há que manter a máxima lucidez. Oportunamente relatarei em pormenor todas as peripécias daquela emboscada.

O comandante da coluna era eu. Efectivamente, comigo na coluna iam mais 2 furriéis, mas eu era o mais antigo. Como um dos furriéis era mulato e angolano e para fazer um certo aproveitamento militar do feito, o capitão quis melhorar a coisa, pois ele entendia que o feito merecia uma medalha e por duas vezes me pediu para refazer o texto do relatório da emboscada que tinha sido redigido por mim.
O Sousa, que era um dos furriéis que ia na coluna, ao saltar do Unimog partiu um pé.
Consta que o Sousa, após a independência de Angola, era capitão do MPLA.
Parece que houve quem o visse fardado de capitão.

(Rogério Magro)



Comandante – Coronel de Infantaria Luís Gonçalves Carneiro
O Batalhão de Caçadores 1920 foi formado no RI 2 - Abrantes e embarcou a 08/07/1967 no navio Vera Cruz, com destino à vila de Gago Coutinho (actual N’Guimbo – Leste de Angola) e era composto por 3 companhias: CCS 1719, CCAÇ 1720 e CCAÇ 1721