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quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

Rogério Magro
Muito Perto da Morte


Acabados de chegar à Vila de Gago Coutinho, hoje Lumbala N’Guimbo, uma das primeiras operações do pelotão a que eu pertencia, foi a de ir efectuar protecção à JAEA (Junta Autónoma de Estradas de Angola) cuja equipa era chefiada, naquela zona, pelo célebre “Samuapa” encarregado de equipa da JAEA, pessoa altamente disciplinadora e muito temida por quem com ele trabalhava.
A equipa do “Samuapa” estava a reparar uma ponte de madeira que tinha sido parcialmente queimada pelo inimigo (MPLA).

Para os militares, o serviço de protecção aos trabalhos da JAEA era considerado como “um certo repouso”, pois limitava-se a que, durante as horas de trabalho, estivessem nas orlas da mata a fazer a respectiva segurança.

O problema principal era o do alojamento que, na maioria das vezes, era bastante precário, pois, ou era em casas abandonadas e em ruínas, ou em tendas, como foi neste caso.

Juntamente com o pelotão estava, como reforço, um grupo de uma dúzia de “Flechas” (como era designada a tropa africana recuperada ao IN) que se encontrava igualmente sediada em Gago Coutinho e cuja actividade era coordenada pela Pide.

As obras de restauração da ponte decorriam com alguma normalidade.

Os estragos eram razoáveis e quando queimaram a ponte, os “tipos” deixaram lá uma mensagem escrita em papel, a qual dizia mais ou menos isto: “estas pontes de madeira já não se usam, substituam-na por uma de betão” (além de “chatos” os “tipos” eram exigentes!).

Estava tudo a andar nos conformes até que num belo dia, ao anoitecer e quando o pessoal já se estava a preparar para a segurança dessa noite com o gerador da JAEA ligado para iluminar o acampamento, começamos a ouvir um barulho de um helicóptero no ar.

Desligou-se o gerador, ficou tudo às escuras e o héli começou a andar ali às voltas no ar com todo o pessoal de G3 apontada ao héli, até que se ligou novamente o gerador e o alferes ordenou aos condutores para ligarem os faróis dos Unimog’s e apontarem as luzes para a picada, onde o héli acabou por aterrar.

Nós sabíamos que os helicópteros estavam proibidos de levantarem voo a partir das cinco horas da tarde, já que não possuíam instrumentos de navegação nocturna, nem as pistas existentes no mato tinham iluminação.

Aconteceu que o alferes-piloto levantou voo, para proceder à evacuação de dois soldados dos comandos, já depois da hora permitida.

Anoiteceu, perdeu-se, já estava quase sem combustível e foi um milagre ter encontrado ali o nosso acampamento, pois, caso contrário, teria que aterrar no mato e lá passar a noite.
Esta situação causou-nos alguma perplexidade, à mistura com um grande susto, já que era completamente inesperado ver um “bicho” daqueles voar à noite e, por momentos, chegamos a pensar que íamos ser atacados pelo helicóptero.

Para o piloto, cabo especialista e para os dois feridos que, por sinal, até nem tinham nada de grave, foi uma sorte dos diabos, pois a rota para Gago Coutinho nada tinha a ver com o local onde nos encontraram.

O enfermeiro lá deu uma ajuda aos feridos e o alferes-piloto mais o cabo especialista apanharam uma grande “moca” pois, segundo eles, não se podiam ir deitar sem comemorarem a nossa inesperada recepção.

O radiotelegrafista mandou uma mensagem informando que o héli estava estacionado no nosso acampamento, o qual ficava a cerca de 70 km de Gago Coutinho, local onde se encontrava a base aérea e o comando militar, tendo igualmente solicitado o envio urgente de gasolina para o helicóptero.

No dia seguinte, após ter chegado a coluna com o combustível, o héli lá regressou a Gago Coutinho, sem que antes o piloto se viesse despedir muito efusivamente de todos nós.

As obras de recuperação da ponte continuavam em bom ritmo, até que a chuva apareceu, os trabalhos foram interrompidos e parte do pessoal recolheu às tendas.
Eu também fui para a minha tenda e deitei-me para ler uma revista das selecções Reader’s Digest bastante antiga que alguém me tinha feito chegar às mãos.
Estava eu deitado com as cartucheiras a fazerem de almofada e, só por um mero acaso, não estava com a cabeça encostada ao pano da tenda porque este estava molhado, quando, volvidos alguns minutos, ouço um tiro, mas não liguei grande importância já que era muito frequente haver um ou outro disparo de arma, por descuido de algum militar. No entanto, começo a ouvir vozes que dizem haver um ferido e, logo de seguida, aparece-me o Furriel Frota à entrada da minha tenda e pergunta:
- “Ó Magro, estás vivo?!”
Eu, que entretanto já me tinha sentado, pergunto sobressaltado:
- “Ó pá, o que foi?! O que é que se passa?!”
Responde-me o Frota:
- “Olha para trás, para o pano da tenda!”

Olhei e vi que a tenda estava furada pelo projéctil do tiro que se tinha ouvido no acampamento, havia alguns segundos atrás.

Continuou o Frota:
- “Um ‘Flecha’, na tenda ao lado da nossa, estava sentado com a FBP(1) em cima dos joelhos e, talvez por descuido, a arma disparou e a bala atravessou a nossa tenda e foi atingir um outro tipo dos ‘Flechas’ que se encontrava na tenda a seguir e que dormia ao contrário, isto é: com a cabeça para o lado dos pés. Por isso também teve sorte, levou um tiro num pé.”

Eu voltei-me novamente para trás a observar o furo na tenda provocado pelo projéctil, o qual estava a centímetros das cartucheiras que me serviram de almofada e onde eu tinha a cabeça.
Fiquei ali uns minutos a reflectir e a falar com os meus botões:
- “Ias ‘lerpando’ (2) deitado, com um tiro na ‘moleirinha’ e a ler umas selecções muito antigas do Reader’s Digest!”

Entretanto, lá chegou o helicóptero que evacuou o ‘Flecha’ ferido com o tiro no pé.

A ponte, passados mais uns dias, ficou reparada, mas creio que mais tarde voltou a ser queimada, mas já não me calhou a mim ter de ir para lá novamente.

A cada passo, nos encontros de almoços anuais da tropa, lá me vêm alguns soldados recordar, uns da emboscada, outro do susto do helicóptero e outros a lembrarem-se e a dizer-me:
- “Eh pá, e quando você ia ‘lerpando’(2) deitado a ler?!”

--- xxx ---
(1) – A Pistola-metralhadora FBP foi projectada no final da década de 1940 por Gonçalves Cardoso, Major de Artilharia do Exército Português e foi produzida pela Fábrica de Braço de Prata (FBP) em Lisboa, com cuja sigla foi baptizada. Foi muito utilizada em África, no início das guerras coloniais, mas, por ser uma arma pouco confiável (em caso de queda, podia dar-se um disparo), deixou de ser usada em termos operacionais.
(2) - “Lerpar”, termo usado no jogo da Lerpa, muito praticado pelos militares, jogo a dinheiro, muito simples no qual era tirada uma carta que era o trunfo, cada jogador tinha três cartas e quem fosse a jogo e não fizesse nenhuma vaza, “lerpava” e colocava na mesa o valor correspondente ao dinheiro em jogo que se encontrava na mesa.







Rogério Magro
Operação Lumai


Nunca percebi porquê, mas era normalmente aos fins-de-semana que nos eram comunicadas as operações em que iríamos tomar parte.
Para quem está no mato, os dias são todos iguais e então porquê comunicar nos dias de sábado ou domingo a preparação para uma operação militar?!
Nunca o soube, mas mais uma vez assim aconteceu.

Era domingo, o Alferes Castro transmitiu-me que no dia seguinte o pelotão partiria para mais uma operação sem adiantar mais pormenores, dizendo-me simplesmente que era uma operação com a duração de quatro dias e para proceder à requisição de rações de combate para quatro dias.

Pela manhã do dia seguinte partiu o pelotão em Unimog’s e, percorridos uns 90 km, estacionamos no quartel dos fuzileiros especiais que estavam aquartelados na margem do rio Lungué Bungo, junto a uma ponte sobre aquele rio que, segundo constava, o seu projecto era da autoria do famoso engenheiro de pontes Edgar Cardoso.


Ficamos lá o resto do dia e aí dormimos, tendo à noite sido informado que eu com a minha secção de combate e a do Furriel Santos partiríamos de bote com os fuzileiros que nos transportariam por rio e nos deixariam perto do Lumai, local da operação que iríamos efectuar.

O Alferes Castro seguiria no dia seguinte, já que os fuzileiros não podiam dispor dos botes suficientes para nos transportar a todos de uma só vez.

Aproveitei nessa noite para confraternizar com um “fuzo” que era do Porto e que eu conhecia bem das jogatanas de bola que fazíamos no célebre campo das “caveiras” como lhe chamávamos e que ficava, ao tempo, junto ao cemitério de Agramonte. Recordo-me de me ter encontrado com esse fuzileiro por diversas vezes, quer quando passava pelo Lucusse, quer quando a tropa parava no seu quartel. Ele foi a primeira pessoa que, mal eu desembarquei do comboio no Luso, proveniente de Nova Lisboa, me abordou gritando: “- Ó Barrigana!”

Dei-lhe um abraço e disse-lhe que ia para o Lucusse.
Diz-me ele: “- é pá fica perto de onde eu estou!” (por mais que me esforce, não me consigo recordar do seu nome).

Voltando ao tema da operação: pela manhã do dia seguinte partimos em cinco botes, cada bote levava quatro militares e um fuzileiro que tripulava o bote. Começou a chover e a chuva durou quase todo o dia, o que não era habitual naquelas paragens.

Como era a primeira vez que fazia, de bote, uma “excursão” rio acima e ainda para mais num rio bastante sinuoso que, várias vezes nos obrigou a entrar pela margem do rio adentro, já que com a velocidade do bote o fuzileiro não tinha tempo de fazer a curva para, logo de seguida, entrarmos noutra curva do rio.

Enfim…, como íamos já todos encharcados pela chuva era, mais banho, menos banho. Lembro-me muito bem de ter perguntado ao fuzileiro de como procederíamos caso fossemos atacados da margem do rio e responde-me ele:
“- Se, entretanto, com o tiroteio o bote não afundar, vamos direitos ao local de onde vêm os tiros e desembarcamos, ou você quer atirar-se fardado ao rio e ir à pesca submarina com a G3?”
Claro que me calei e comecei a meditar sobre a possibilidade de sermos atacados pela margem do rio.

Continuava a chover e já não havia cigarros nem o isqueiro acendia até que, cerca das duas da tarde, os botes pararam e os fuzileiros indicaram-nos o local de desembarque.
Desembarcamos e os “fuzos” partiram de regresso ao seu quartel.

Ficamos ali na mata junto a um morro e foi um problema conseguir transportar as caixas das rações de combate, já que as mesmas se encontravam todas desfeitas devido á chuva.

Entramos na mata (eu não sabia se estávamos longe ou perto da povoação) com as caixas das rações desfeitas e alagados até aos ossos.

Como era eu quem comandava a tropa e achava praticamente impossível fazermos uma progressão face ao problema do transporte das rações de combate, chamei o Furriel Santos e, após uma pequena troca de impressões, ele ofereceu-se para, com a sua secção, tentar chegar à povoação e arranjar maneira de nos virem ajudar a transportar as rações.
Informei-o de que, segundo indicação dos fuzileiros, a povoação ficaria para a direita do local onde nos encontrávamos e que lá se encontrava uma guarnição da polícia composta de quatro homens. O Santos lá arrancou com o seu pessoal e eu disse-lhe:
“- Ó pá segue em frente a ver se encontras a picada ou algum trilho e depois segue pela direita.”

Eu fiquei com algum receio de ele se perder e, entretanto, ficar noite e termos de dormir ali naquele sítio e todos alagados.

Passada aí cerca de uma hora, começamos a ouvir o barulho do motor de uma viatura que, à medida que se aproximava do local onde estávamos, se vinha cada vez a ouvir mais intensamente.
Avancei em frente com parte do meu pessoal e o restante ficou junto às rações e aí a uns 500 a 600 metros estávamos junto à picada e, passado algum tempo, apareceu o Santos dentro de um Land Rover que era conduzido pelo comerciante residente na povoação, o qual se disponibilizou a nos prestar auxílio, já que a polícia não tinha viatura.

Carregamos para o Land Rover as rações de combate e lá seguimos para a povoação que se situava a cerca de três Km do local onde tínhamos estacionado.

Fomos recebidos pelo Sub-Chefe da polícia que comandava a guarnição e o mesmo já tinha dado instruções para acender o forno de cozer o pão que lá existia e foi a maneira do pessoal secar as fardas rapidamente.

Na povoação existia uma boa e grande casa que teria sido onde, em tempos, existiu um Posto Administrativo e onde teria habitado o respectivo Chefe de Posto. A casa encontrava-se abandonada e uma parte dela tinha sido ocupada pelos quatro polícias.
Ficamos instalados nessa casa.

O comerciante era um homem já maduro aí de uns sessenta anos, natural da Madeira, mas com alguns anos de Lisboa como taxista, segundo nos contou. Era o único branco que lá vivia há já muitos anos, de seu nome Aguiar, com o qual criamos, nos dias que ali permanecemos, uma boa amizade.

A população nativa andaria aí à volta de cerca de 2.000 pessoas.

Depois de ter instalado o pessoal e distribuído as tarefas inerentes à segurança, ficamos a conversar com o sub-chefe da polícia que estava em sobressalto, pois tinha informação que iria haver uma reunião na povoação com elementos com algum peso no MPLA.

Após ir verificar a segurança que tinha montado à casa, já que a polícia só tinha uma sentinela que era dividida por três turnos durante a noite e o sub-chefe só estava de serviço durante o dia, lá me fui deitar no chão da sala, mas já com a roupa toda seca, pois o forno de cozer o pão deu uma grande ajuda e tivemos também o privilégio de comer pão quente que os polícias amavelmente cozeram para a tropa.

No dia seguinte, ao fim da manhã, apareceu o Alferes Castro com o resto da tropa, a qual veio logo direito à povoação porque os fuzileiros os deixaram no local do rio com acesso à povoação e não a três ou quatro Km como nos tinham deixado a nós no dia anterior.

Feitas as apresentações ao sub-chefe da polícia e ao Sr. Aguiar a, tropa recém chegada instalou-se no local onde eu a tinha instalado no dia anterior, embora repartida por outras divisões, já que a casa era grande e havia espaço suficiente para todos.

Os polícias voltaram a cozer mais pão, o que muito nos ajudava a comer as rações de combate.

No dia seguinte, a meio da tarde, o Alferes Castro reuniu com os três furriéis e informou que naquela noite iríamos fazer um envolvimento à povoação à excepção do trilho de acesso à mesma e que já tinha conhecimento do local onde se iria efectuar a reunião com os quadros do MPLA e que depois daria ordem para o assalto ao local da reunião.

Correu tudo muito bem, foi efectuado o assalto ao local da reunião, não foi dado um único tiro, até porque a visibilidade era diminuta, pois só havia uma pequena fogueira dentro do “kimbo” onde decorria a reunião, tendo sido feitos vinte e um prisioneiros, os quais foram transportados para a sala da casa onde nos encontrávamos.

Foram efectuados alguns interrogatórios aos prisioneiros, ficando estes todos presos na sala, vigiados dia e noite por alguns soldados.

Diariamente, uma vez de manhã e outra de tarde, os prisioneiros eram levados em fila indiana ao mato para fazerem as suas necessidades fisiológicas.

Aconteceu que, em determinado dia, logo ao amanhecer, vimos entrar pela povoação um nativo amarrado pelas mãos com umas lianas e logo atrás dele outro negro com uma zagaia numa das mãos.
O homem que trazia o prisioneiro chegou junto do alferes e disse-lhe:
“- Eu sou português, fui tropa nos Luanda. Este tipo fugiu, eu vi e fui atrás dele com a zagaia e prendi-o, bandido não pode fugir.”

Este homem de seu nome João, vivia na aldeia e andou uma tarde e uma noite no encalço do fugitivo e prendeu-o. Eu virei-me para o alferes e disse-lhe:
“- Este homem merecia uma recompensa.”
“- É verdade diz o alferes, mas não temos nada para lhe dar!
Diz logo o sub-chefe da policia:
“- Eu tenho ali um garrafão de vinho e damos-lhe um púcaro que o homem bem merece!”

E assim foi, o sub-chefe encheu o púcaro que era para aí de meio litro e o nosso homem bebeu-o de uma só vez!
“- Vai outro?” Perguntei eu.
“- Vai mesmo outro”, respondeu ele e emborcou mais meio litro de uma só vez, e o João lá foi para a sua palhota, mas já ia a marchar com o passo trocado.

No dia seguinte chegou uma coluna militar do Luso que transportou os prisioneiros.

Nós já tínhamos cumprido a nossa missão que era de quatro dias, mas já tinham passado oito e ainda ali nos encontrávamos em situação cada vez mais precária:
- tinham acabado as rações de combate;
- os polícias já não nos podiam cozer mais pão porque senão ficavam eles à rasca;
- iam-nos desenrascando umas couves da horta que tinham plantado, com as quais o pessoal ia improvisando umas sopas de água com couves;
- o Sr.Aguiar ia fiando o pouco que tinha e eu ainda fui convidado por ele para almoçar e recordo-me que comi um arroz de cogumelos silvestres feito por ele, coisa tão boa que nunca mais me esqueci de tal.

A situação piorava de dia para dia, pois era raro o dia em que não havia problemas com a povoação devido aos soldados andarem atrás das galinhas que os nativos, como é óbvio, escondiam e que os soldados, com fome, queriam “palmar”.

Eu, entretanto, não me sentia bem indo almoçar à casa do Aguiar, até porque ele só me convidava a mim, talvez porque lhe causei uma impressão marcante, julgo eu, quando ele nos foi buscar ao mato e observou a maneira como eu dirigi e consegui pôr o pessoal a secar-se dois de cada vez, no forno de cozer o pão, enquanto os outros faziam a segurança e da maneira como eu acalmei o sub-chefe que estava todo acagaçado de medo à conta das informações que lhe tinham chegado.

Como não me sentia muito confortável com aquela situação dos almoços do Sr. Aguiar, expliquei-lhe os motivos e ele compreendeu e respondeu-me que nem que quisesse, também já não tinha possibilidade de convidar mais alguém.

Fiquei sempre muito reconhecido ao Sr. Aguiar e fiquei muito chocado quando, passados alguns meses, o encontrei no Luso, numa esplanada a beber uma cerveja e lhe perguntei se a tropa já lhe tinha pago o que ele tinha cedido fiado e ele respondeu-me que não.

Ainda interpelei o Alferes sobre este caso, mas ele não deu muita importância ao assunto, respondendo eu que muito lamentava tal facto.

Já estávamos naquela situação havia catorze dias, portanto havia já dez dias que estávamos a sobreviver com mangas (algumas ainda verdes) apanhadas das árvores, já não havia frangos na povoação, desapareceram; uns roubados e outros escondidos a sete chaves pelos seus donos, alguns soldados começaram também a roubar mandioca e a tentar cozinhá-la e outros a comê-la crua.
Então fui ter com o Alferes e disse-lhe:
“- Meu Alferes, isto não pode continuar assim! Não vai demorar muito tempo para o pessoal começar aos tiros dentro da povoação para roubar para comer e é melhor o meu Alferes ir ao rádio da polícia e mandar uma mensagem urgente para nos virem buscar, senão isto vai acabar mal!”

Ele lá foi falar com o sub-chefe e veio-me transmitir que mandou uma mensagem extremamente dura para o Comando. Deu resultado a mensagem e fomos informados que no dia seguinte os fuzileiros nos iriam buscar a todos.

A meio da manhã do dia seguinte lá apareceram os fuzileiros com os botes, só que o número dos botes era o mesmo, pelo que cada bote levava mais dois militares e, nalguns casos mais três, do que seria normal.

Então aconteceu o seguinte; os fuzileiros começaram a aperceber-se de que o excessivo consumo de gasolina de cada bote, dado o peso a mais que levavam, iria resultar que não houvesse combustível suficiente para chegarmos ao destino.

Esta situação começou a verificar-se quando o primeiro bote ficou sem gasolina e teve que utilizar o jerrican de reserva que cada bote levava, situação esta que se veio a verificar também com os demais botes até que, a páginas tantas, aparece um bote cujo fuzileiro dá instruções para que cada bote entregue a gasolina do seu depósito para possibilitar que dois botes cheguem ao quartel dos fuzileiros e venham trazer reserva de gasolina, e assim se fez.

Dois botes partiram com a gasolina existente e os restantes ficaram à deriva no rio Lungué Bungo.
Aí eu lembrei-me do que me tinha dito o “fuzo” caso fôssemos atacados da margem, pois agora com os botes à deriva era mesmo só remar com as G3 para chegarmos à margem e foi isso que eu disse meio a brincar ao fuzileiro que conduzia o bote e, pelo sorriso que fez, penso que não gostou nada da conversa.

O pessoal dos outros botes não ouviu o meu desabafo, mas a verdade é que passados alguns minutos começaram a atirar granadas para o meio do rio e rapidamente o rio ficou cheio de peixes mortos a boiar.
Diz-me o fuzileiro que conduzia o bote onde eu ia:
“Os ‘fuzos’, quando alguma coisa corre mal, é assim que festejam!”
Disse eu: “- Já percebi.”

Depois de cerca de uma hora à deriva, mais coisa menos coisa, lá apareceram os botes com a reserva de gasolina e lá seguimos sem mais problemas até ao quartel dos fuzileiros, onde chegamos muito perto de anoitecer.

No dia seguinte lá seguimos de unimog para o Lucusse, regressados de uma operação de quatro dias que demorou catorze.

Mais tarde fomos informados de que, efectivamente, tínhamos capturado dois importantes comissários políticos do MPLA.


1 – Lumbala
2 – Sessa
3 - Lucusse






sexta-feira, 19 de abril de 2013

Rogério Magro
A Pasta


Corria o mês de Maio de 1968 e, na véspera do dia de S.Nord Atlas, sou chamado ao gabinete do capitão, apresento-me e diz o Capitão Azuil de Carvalho:

- "Vá pedir a pasta ao Sargento Castanheira para amanhã embarcar no Nord e ir ao Luso ao banco levantar este cheque para pagar os ordenados no fim do mês, mas atenção, adverte-me o capitão, agora veja lá se cai como o outro sargento que caiu no conto do frasco com pérolas preciosas".

Ao tempo era muito usual cá, na chamada metrópole, o conto do vigário do vigésimo premiado. Tratava-se de uma vigarice já com barbas, mas havia sempre quem caísse nesse famoso conto do vigário.
Em Angola o conto do vigário, em substituição do vigésimo premiado, era a estória da garrafinha de martini cheia de pedras preciosas e diamantes e, tal como cá com o vigésimo, em Angola havia sempre quem fosse na vigarice das pedras preciosas.
O negócio era bom demais e as pessoas, com a ganância, compravam uma garrafinha cheia de "pedras preciosas" por cem ou duzentos contos (500 ou mil euros) a um tipo que contava uma estória bem contada; as "pedras preciosas" valiam uns milhares largos, dizia, e havia sempre um cliente que ia na conversa e, depois as ditas pedras que, segundo diziam, eram muito bonitas e até pareciam verdadeiras, não eram sequer pedras semi-preciosas e os cem ou duzentos contos lá tinham voado.
Pelos vistos um sargento que tinha ido levantar a "massa" para pagar aos militares caiu na vigarice e lá foi parar à "grelha".

Na terça-feira lá embarquei no Nord Atlas e o capitão, à entrada para o avião, tornou a lembrar-me da garrafa de martini.

Sair do mato de avião para ir à cidade do Luso, que era uma cidade onde não faltava nada, havia de tudo; restaurantes, hotéis, cinema e etc., equivalia a estar uma semana de férias, pois só regressaria na terça-feira seguinte.


A cidade do Luso (hoje Moxico) distava de Gago Coutinho aí cerca de 400 Kms e como o Nord Atlas ainda fazia paragem em Gangamba para largar carga e embarcar pessoal, só desembarquei no Luso pelo meio da tarde.

Sempre que passava pelo Luso e dava para passar a noite, ia ficar na Pensão Minhota do Sr. Figueiredo que era natural de Santo Tirso.

Arranjei boleia para a cidade, já que o aeroporto se situava no extremo da cidade e fui direitinho para a pensão e lá fiquei hospedado em regime de pensão completa.
Tomei um duche, arrumei a farda, vesti roupinha fresca a estrear; calças, camisa e sapatos novos, comprados em Abrantes antes de embarcar no Vera Cruz, em Lisboa.
Sentado na esplanada a saborear uma Cuca fresquinha e um prego no prato (maravilha das maravilhas para quem, uns dias antes, tinha andado no mato aos tiros e a comer ração de combate), sentia-me um privilegiado tal como os militares da guerra do ar condicionado.
Convém recordar que na dita guerra do Ultramar, existiam três tipos de guerra, a saber:
- a guerra do ar condicionado que era a guerra dos militares que se encontravam nas cidades;
- a guerra do arame farpado que era a guerra dos militares que nunca saiam do quartel no mato e que estava cercado pelo arame farpado, também chamados de freiras, por nunca saírem do convento;
- e a guerra dos militares operacionais que andavam em operações que faziam as escoltas às colunas civis de reabastecimento aos quartéis que existiam no mato.

Quarta-feira, dia seguinte ao da minha chegada ao Luso, cometo um erro tremendo! Fui ao banco com a pasta e levantei o cheque. Recebo 235 contos em escudos angolanos que enfio na pasta e só depois de ter saído do banco é que caí em mim. Parei e disse para comigo:
- "Agora vais andar até terça-feira próxima com a pasta atrás de ti?! Arranjaste a bonita!"

È aqui que começa a minha odisseia com a pasta, episódio que nunca mais esquecerei.
Levo a pasta, agora com o "cacau", para o quarto e a partir daí, ao pequeno almoço, ao almoço e ao jantar, sempre com a pasta atrás de mim, pareço um autêntico executivo em mangas de camisa! O que eu fui arranjar, mas o pior ainda estava para vir!
Aí talvez pela sexta-feira, estou eu na esplanada a beber uma cerveja e com a pasta entre as pernas, aparece-me o Sargento Isidro da força aérea que estava em Gago Coutinho. Eu e o Sargento Isidro ficamos amigos, após termos sido os protagonistas, eu o provocador de uma cena passada no bar de sargentos ele o autor de um murro que arrebentou com as ventas de um furriel que se meteu na provocação.
Após mais uma rodada de cervejas, o Sargento Isidro propôs irmos à noite ao cinema, mas não queria ir fardado e eu emprestei-lhe uma camisola que tinha de reserva. Ficamos de nos encontrar após o jantar.
Não me parecia, melhor dizendo: não podia ir de pasta na mão para o cinema, tinha que encontrar uma solução para guardar a pasta em lugar seguro. Ainda pensei pedir ao Sr. Figueiredo que me guardasse a pasta no cofre, mas aí, pensei eu, ia levantar suspeitas e curiosidade para saberem o que eu tinha na pasta.
Acabei por resolver guardar a pasta dentro do guarda-fatos ou guarda-vestidos, como também lhe chamavam à época.
O quarto tinha duas portas, uma de entrada junto às escadas e outra do lado oposto, que dava acesso à casa de banho. As duas portas tinham chaves que estavam comigo, mas para além das fechaduras e das portas serem de fraca segurança, com certeza que devia haver duplicados das mesmas. O guarda-fatos não tinha chave.
Aproximava-se a hora do encontro e eu estava muito indeciso e preocupado com a situação, mas lá meti a pasta a um canto do guarda-fatos e fechei a porta do mesmo que, constatei, fechava mal devido a folga, mas lá ficou encostada.
Desci e encontrei o Sargento Isidro à minha espera e lá fomos a caminho do Cine-Luena.

Compramos os bilhetes, entramos e lá nos sentamos nos lugares respectivos. Não me lembro do nome do filme, nem tão pouco me consegui concentrar nele. O meu pensamento estava na pasta e na "guita".
Comecei a matutar no que o capitão por duas vezes me tinha dito sobre o conto do vigário das pedras preciosas e veio-me à cabeça que alguém da pensão me poderia ter visto sair sem a pasta e ir ao quarto roubá-la e eu chegar a Gago Coutinho sem a pasta nem "massa" para pagamento aos militares.
Teriam passado talvez uns quinze a vinte minutos após o início do filme e eu a ficar com os nervos em franja! Vai daí, virei-me para o sargento e disse-lhe:
- "Estou mal disposto, alguma coisa me caiu mal, vou-me embora porque me apetece vomitar".

"Pirei-me" do cinema e comecei a andar, quase a correr, em direcção à pensão. Entro, subo as escadas, abro a porta e dou com a porta do guarda-fatos meio aberta!
"Ai meu Deus, lá se foi a pasta, estou bem arranjado!"
Abri totalmente a porta e lá vi a pasta no canto. Peguei nela, abri-a, vi os maços de notas e despejei o dinheiro em cima da cama e comecei a contá-lo. Estava todo, respirei de alívio!
Nessa noite dormi com a pasta debaixo do travesseiro. Nunca mais a larguei até embarcar na terça-feira no Nord Atlas de regresso a Gago Coutinho.

Ao desembarcar lá estava o capitão à minha espera que me acompanhou até à secretaria onde estava o Sargento Castanheira para este contar o dinheiro e confirmar que estava tudo em ordem. Deve ter respirado de alívio também, sem nunca lhe ter passado pela cabeça o martírio que eu passei com a maldita pasta.

Os oito dias de férias na cidade do Luso foram um pesadelo para mim e ainda hoje, passados 45 anos recordo este episódio com alguns arrepios e tudo por causa do erro de ter ido levantar o dinheiro no dia a seguir à chegada ao Luso.

Ao almoço, na messe de sargentos no dia do meu regresso, lá me apareceu o Sargento Isidro o qual tinha regressado no dia seguinte à ida ao cinema a Gago Coutinho, que quis saber o que me tinha acontecido e eu lá lhe contei uma estória de má disposição ocasionada talvez pelo jantar ingerido na pensão e nesse dia à noite lá fomos até ao bar dos sorjas beber umas cervejolas até o bar fechar e nos irmos deitar já bastante encharcados sem termos apanhado cacimbo algum.







quinta-feira, 14 de março de 2013

Rogério Magro
Um Magro Na Prisão


Numa terça-feira (dia de São Nord Atlas), dia em que a maior parte dos militares aquartelados em Gago Coutinho ia à pista de aviação ver quem chegava e aguardar pela entrega do correio, o nosso Furriel Magro estava de Sargento de Piquete. Este serviço em Gago Coutinho era desgastante, já que o Comandante do Batalhão ordenava que o piquete, durante toda a noite, fizesse constante patrulhamento fora do quartel, ou seja, concretamente, patrulhar a vila.
O nosso Furriel Magro, após o render da parada, dirigiu-se ao alferes responsável pela oficina auto, alferes de origem indiana e do qual não se lembra o nome e ao qual requisitou dois Unimogs para o serviço do piquete (15 homens, incluindo furriel e condutores).



O alferes disse-me de, imediato, não ter viaturas operacionais, apenas um jeep disponível. Fiz-lhe ver que tinha de ir fazer segurança à pista de aviação, para o Nord Atlas aterrar em segurança e tinha de, á noite, fazer o patrulhamento à Vila.
"Ó pá já lhe disse que não tenho viaturas operacionais, algumas já saíram em serviço e estes aqui estão para ser reparados, leve o jeep se quiser".
Perante esta situação eu disse para comigo: "Ai é assim, então esperem para ver no que isto vai dar!"
E não é que deu mesmo para o torto, pois até meteu prisão e tudo!
A hora da chegada do Nord, avião de carga (o barriga de ginguba , como lhe chamavam) era pelo meio da manhã. Avisei o pessoal de serviço de que não havia viaturas e ordenei ao cabo condutor que fosse buscar o jeep (um Willys) e que estivesse atento à chegada do avião.
Por volta das 10,30 horas o Nord Atlas apareceu no ar e eu ordenei ao condutor do jeep que com 4 militares seguisse para a pista que eu seguiria a pé com os restantes elementos que estavam de piquete.
O avião sobrevoou a pista duas vezes e não aterrava.
Eu, entretanto, em passo de corrida com os restantes elementos do piquete, fui para a pista e dirigi-me ao alferes que estava de oficial de dia e informei-o que não havia viaturas operacionais e portanto a segurança à pista era efectuada por 4 militares que se deslocavam no jeep e eu seguiria a pé com os outros militares para completar a segurança.
Entretanto, o piloto deu indicação via rádio que não aterrava devido à falta de segurança em volta da pista.
Eu já seguia a pé com os homens, cinco de cada lado, na mata existente na orla da pista.
O avião deu mais uma volta e lá acabou por aterrar. Descarregou o que tinha a descarregar, embarcou quem tinha que embarcar e passados 30 a 40 minutos voltou a levantar voo.
O piquete regressou nas calmas ao ponto de partida e quando lá cheguei estavam o Comandante do Batalhão e o Alferes Oficial de Dia à minha espera. Bati a respectiva pala e de imediato o Comandante ordenou ao oficial de dia que metesse todo o piquete na prisão, por 3 dias.
Lá fui eu e os restantes militares atrás do oficial de dia, o qual não sabia onde era a prisão, nem sequer se a mesma existia. Ao fim de algum tempo lá “encatrafiou” os 14 militares numa arrecadação e a mim disse-me que não tinha local para me prender. Eu ainda lhe disse que não me importava de ficar preso junto do pessoal que eu comandava, mas entretanto lembrei-me que na tropa existiam prisões separadas para praças, sargentos e oficiais.
Face a esta situação, disse-me para eu ficar preso na caserna dos sargentos. Eu lá fui para a minha cama e comecei a berrar que estava preso, que não me incomodassem e que exigia que me trouxessem o "tacho" à cama, o que assim veio a acontecer.
O alarido por mim feito começou a surtir efeito e toda a gente queria saber o que tinha acontecido e, sempre que alguém se aproximava de mim para indagar o que tinha acontecido, eu, aos berros, corria com o pessoal dizendo que estava preso e não tinha direito a visitas e que fossem pedir autorização ao oficial de dia para me poderem visitar.
Esta situação era caricata já que a caserna era grande e dormiam lá vários militares que tinham forçosamente que comigo conviver, mas eu fazia questão de cumprir o meu papel de preso, ponto final!
No segundo dia, pela manhã, o 1º Sargento Humberto (um militar culto e de bom nível) veio junto de mim, perguntou-me se podia falar comigo e disse-me: "Olhe lá ó Magro, você está a levar isto numa de desportiva, mas olhe que as férias vão-lhe para o caraças e esta coisa, a andar prá frente, pode vir a dar-lhe cabo da vida. Trate mas é de arranjar uma folha de papel de 25 linhas e faça já uma exposição-reclamação dirigida ao Comandante, contestando a prisão, pois pelo que eu já soube, você não tem culpa absolutamente nenhuma do sucedido.
Eu segui os conselhos do 1º Humberto e lá redigi a reclamação. o alferes responsável pela oficina auto foi testemunha e confirmou a inexistência de viaturas operacionais, o alferes oficial de dia confirmou que eu me apresentei junto dele na pista, informando-o que não tinha viaturas e que a segurança da pista, ainda que deficiente por falta de viaturas, foi efectuada a pé. O 1º Sargento Humberto, introduziu-lhe alguns termos e preceitos militares e lá mandei entregar a exposição ao Comandante.
Na tarde do 2º Dia de prisão o Comandante mandou chamar-me ao seu gabinete, através do oficial de dia. Dirigi-me para o Gabinete do Comandante, mas antes passei pelo local onde estavam presos os soldados e encontrei a arrecadação aberta e sem ninguém.
Lá segui para o gabinete, entrei bati a pala e fiquei em sentido aí a uns 2 metros da sua secretária. O Comandante era um homem baixote e de bigodinho e óculos grandes. Tinha sido anteriormente, segundo diziam, Comandante da polícia, creio que em Lisboa e, portanto, estava habituado a resolver tudo através da prisão, penso eu.
Depois de olhar para mim e para a folha de 25 linhas, levantou novamente o olhar para mim e disse-me, olhe isto que está aqui escrito não vale nada. Eu reagi afirmando: "Meu Comandante o que aí está escrito é a pura realidade do que se passou a não ser que o meu Comandante pretendesse que eu com um jeep de 4 lugares tivesse lá colocado 15 militares e isso eu não fiz nem nunca farei".
O Comandante respondeu-me: "Pode-se retirar, o seu capitão está ausente, eu irei falar com ele logo que ele chegue, a fim de me informar acerca da sua valia militar".
Retirei-me e, mal tinha saído do gabinete, dei com a presença de alguns soldados que tinham estado presos, cá fora á minha espera (souberam da minha ida ao gabinete do Comandante) e de imediato me interrogaram: "O que é que o 'Zé da Fisga' (alcunha do Comandante que os soldados criaram) lhe quer? A nós já nos libertaram porque amanhã vamos participar numa operação de 3 dias e precisavam de nós". "Ai é?!" - disse eu - "Se calhar a mim vai-me suceder o mesmo".
Foi verdade e eu também alinhei nessa operação de 3 dias. O episódio da prisão de todo o piquete acabou no segundo dia devido á necessidade dos 15 militares para uma operação. O capitão nunca me tocou neste assunto, o que me leva a crer que o Comandante nunca lhe falou sobre o episódio do piquete que foi todo engavetado por não ter viaturas operacionais para efectuar o serviço de segurança á pista de aviação.

Conclusão:
- 15 militares foram presos por não existirem meios que possibilitassem a execução do serviço de que estavam incumbidos!
- Os mesmos 15 militares foram soltos no 2º dia de prisão, a fim de participarem numa operação!

Ele há coisas que, de tão absurdas, só mesmo na guerra é que podem acontecer.






sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

Rogério Magro
Gratidão


No início de 1969, instalados no Dundo, capital da Diamang, mais concretamente no quartel do Camaquenzo, por sinal muito bem instalados comparados com os 18 meses de intensa actividade operacional, a Companhia de Caçadores 1719 encontrava-se a descomprimir e a repousar, exceptuando as duas vezes que tivemos que aguentar na zona do Dala, um mês de cada vez, ainda em actividade operacional.

Um magnata no Quartel - Dundo - capital da Diamang - 1969

No Dundo não faltava nada, era uma pequena cidade onde habitavam os funcionários da Diamang que na altura tinha o monopólio da exploração de diamantes em Angola e como tal havia de tudo.
Todos os espectáculos de teatro e/ou variedades que passavam por Luanda, vinham igualmente actuar no Dundo, que tinha uma sala de espectáculos formidável.
Feito este pequeno preâmbulo, vamos directos à história.
O Capitão manda-me chamar, entrega-me uma planta com o desenho de uma escola e ordena-me que recrute dois ou três pedreiros e um carpinteiro no pessoal da Companhia e que, junto dos serviços da Diamang, proceda ao levantamento de todos os materiais para a construção da escola que se iria erigir no aldeamento do Fucaúma, o qual se situava a cerca de 20 Kms do quartel do Camaquenzo.

Nunca me tinha passado pela cabeça vir a ser mestre de obras, mas foi aí que eu dei os primeiros passos na ligação à construção civil. Também nunca percebi porque quando era preciso fazer algo de novo o Capitão se lembrava sempre de mim, muito embora houvesse 3 alferes, 7 furrieis e dois sargentos, mas enfim, lá fui eu com dois pedreiros e um carpinteiro tratar de construir a escola no Fucaúma que, segundo afirmavam, seria o único aldeamento naquela zona que ainda não possuía escola.
Lá fui com uma GMC requisitar o cimento e os tijolos ao armazém da Diamang e lá me dirigi para o Fucaúma. Fui ter com o soba, um velhote estimável que não falava português, mas através de um sipaio que fez de tradutor do dialecto quioco para o português, lá fizemos as apresentações. Ele já estava informado ao que íamos e prontificou-se a arranjar alguns homens para nos ajudarem na construção da escola, nomeadamente irem buscar água ao rio para encher os bidões de 200 litros que levamos.
Diariamente saíamos de jeep do quartel pelas 8 horas. Ao meio dia o jeep ia-nos buscar para o almoço e depois do almoço lá voltávamos para a obra e às cinco horas o jeep tornava a ir buscar-nos.
A escola tinha o formato rectangular e, se bem me lembro, teria aí uns 20 metros de comprimento por 12 de largura, duas janelas de cada lado e uma porta larga na entrada.
Tudo correu sempre sem problemas, à excepção de um dia em que o pessoal não apareceu para encher os bidões de água e tive que chamar o soba para lhe pedir que arranjasse pessoal para ir ao rio buscar água para a obra não parar. Lá conseguiu arranjar alguns homens, trazidos pelo sipaio, mas foram mais as mulheres que ajudaram a ir buscar água ao rio.
A obra lá se foi erguendo, ainda que por dois meses (um de cada vez intercalados) estivesse parada, dado termos ido para o Dala em operações militares. Durante o tempo que permanecemos no dia a dia na aldeia, fomos sempre bem tratados e era usual transportarmos de boleia as pessoas que se apresentavam pelas cinco horas, aquando do nosso regresso ao quartel e, nomeadamente quando traziamos a GMC (camião), havia alturas em que este ficava superlotado.
Tenho vários episódios que, durante o tempo que demorou a construção da escola, me ficaram na memória, mas este que vou passar a referir foi, de todos, para mim, o mais marcante.
Estava eu sentado à sombra de um embondeiro, numa cadeira de ripas verdes que o soba todos os dias lá colocava, quando se dirigiu a mim com um rádio na mão, um homem muito alto e já com alguma idade. Como não falava português, não o entendi e, após ter chamado alguém que traduzisse o dialecto da etnia quioco, fiquei a saber que ele me pedia para consertar o rádio, dado que o mesmo tinha deixado de funcionar.
Tratava-se de um rádio a pilhas, grande e com uma pega na parte superior. Eu não percebia nada de rádios, mas como estava a dirigir a obra que, tijolo a tijolo, ia avançando, disse-lhe que deixasse o rádio que eu ia ver se o conseguia compor.
Com um canivete, que sempre me acompanhou e que ainda hoje tenho guardado, pus-me a desapertar os parafusos e lá consegui abrir o rádio. Verifiquei que havia um fio que se tinha dessoldado, encostei-o no sitio devido, liguei o rádio e este começou a tocar. Fechei novamente o rádio e mandei chamar o sipaio para transmitir ao homem alto e velho que ia levar o rádio para o quartel e que no dia seguinte o traria a funcionar.
No quartel pedi na oficina auto que me soldassem o fio que estava solto.
No dia seguinte, quando chegamos ao aldeamento, lá estava o homem alto e velho à espera junto á palhota do soba.
Eu, maldosamente, tinha escondido o rádio debaixo do banco da frente do jeep e, quando saí sem o rádio, observei que o homem estava com uma cara de grande decepção.
Dei a volta ao jeep, tirei o rádio debaixo do assento e, junto dele, liguei-o e de imediato começou a tocar.
Vi logo no rosto do homem uma grande satisfação. Entreguei-lhe o rádio e ele, sempre muito sorridente e agradecido, puxou do bolso uma nota toda embrulhada de cem escudos de Angola e estendeu a mão para ma dar.
Ralhei-lhe e mandei transmitir-lhe pelo sipaio que a reparação não custara nada e que ele guardasse o dinheiro, o que fez com alguma relutância. Voltou a agradecer-me, bateu palmas e lá desapareceu com o rádio a tocar.
Durante bastante tempo deixei de ver o homem alto e velho até que um dia, ao chegar à sanzala pelas nove horas, vi que junto ao embondeiro estava no chão um cabrito com as quatro patas amarradas, mas não dei grande atenção à situação.
Passados alguns minutos aparece-me o homem alto e velho e, no seu dialecto e com alguns gestos, deu-me a entender que o cabrito era para me oferecer. Mandei chamar o sipaio para ele melhor traduzir o que eu adivinhava entender e este confirmou que ele fazia muito gosto em me oferecer o cabrito.
Eu não estava lá muito pelos ajustes e perguntei ao sipaio se ele tinha cabritos e este respondeu-me que não, que o homem alto e velho era muito pobre.
Então pedi-lhe para ele perguntar ao velho aonde ele tinha arranjado o cabrito.
Após o sipaio lhe ter efectuado a pergunta, este respondeu-me que ele tinha ido comprar o cabrito a uma sanzala que se situava a mais de 100 Kms do local em que estávamos.
Fiquei ainda mais perplexo e respondi que lamentava muito mas não podia aceitar o cabrito.
Após diálogo entre o sipaio e o homem velho, o sipaio transmitiu-me que a ser assim, ele, homem velho, ficaria muito triste.
Então eu respondi-lhe que até ao meio dia, quando nos viessem buscar de jeep, eu tomava uma decisão final.
O jeep chegou perto do meio dia e o homem alto e velho esteve durante toda a manhã a aguardar pela sua vinda junto ao cabrito. Eu solicitei então a um soldado que colocasse o cabrito no jeep e dirigi-me ao homem alto e velho e disse-lhe, obrigado.
O homem alto e velho de imediato começou a bater palmas de contentamento e mal o jeep arrancou, percorreu alguns metros atrás do mesmo a bater palmas e com um sorriso de contentamento que ainda hoje guardo na memória e que eu gravei como o maior acto de gratidão que registei em toda a minha vida.

Nota : O cabrito foi bem recebido no quartel e deu lugar a uma caldeirada que acabou muito bem regada.

"A gratidão é o único tesouro dos humildes." (William Shakespeare)






terça-feira, 29 de janeiro de 2013

Carlos Magro
Operação Siroco


A Operação Siroco foi uma operação militar que se realizou em sucessivos anos no Leste de Angola e que era realizada por tropas especiais; Comandos, Fuzileiros e Pára-Quedistas, às quais a FAP prestava a sua colaboração, nomeadamewnte em:
- Transporte de tropas e colocação das mesmas no terreno, apoio aéreo e transporte dos feridos;
- Bombardeamentos com balas explosivas e incendiárias do Héli-Canhão;
- Bombardeamentos de bombas napalm pelos T6 nos acampamentos das forças inimigas;
- Transporte de prisioneiros inimigos e armas capturadas.



Armamento capturado pelos "comandos" na
Op. Siroco, com a cooperação de "Os Saltimbancos"

Guerrilheiro capturado

Armamento capturado - Op. Siroco 1972








Carlos Magro
O Heli-Canhão



Quando fui para o destacamento de Cuito Cuanavale no Héli-Canhão, tive que aprender a disparar com o canhão, logo pensei que estava tramado porque, não só tinha que prestar seviço como mecânico, mas também de atirador, enfermeiro, caçador e prestar apoio aéreo às tropas no terreno, quando o solicitassem.
Lembro-me que no primeiro pedido de apoio aéreo pelas tropas no terreno em confronto com uma coluna de guerrilheiros do MPLA ou FNLA, o piloto, com os pneus do helicóptero quase a roçarem nas folhas das árvores, começou a transmitir-me através dos auscultadores:
- "Magro, quando chegarmos ao local, vou subir e descer rapidamente aos "SS", tens que te aguentar agarrado ao canhão, de pé e atento á mira telescópica, porque não sabemos quantos guerrilheiros estarão a disparar para o helicóptero e podem ser muitos!"
Assim, quando chegamos ao local, as nossas tropas deram indicação ao piloto da direcção que o "gajos" tomaram na fuga. Ainda percorremos bastante área mas nem vê-los! Evacuamos alguns feridos e regressamos ao Cuito.

Também, ainda no Cuito, fomos informados que tinha havido grande tiroteio e baixas das nossas tropas “Os Flechas” (soldados negros recuperados ao inimigo.
Um Héli dos “Saltimbancos” mais quatro Hélis dos nossos "primos" da África do Sul, que nos ajudavam porque tinham receio que a guerra se alastrasse áquele País (o que mais tarde se veio a verificar com a independência), fomos verificar os estragos: muitos mortos (alguns com os miolos de fora), foi impressionante! Vimos um ferido a mexer-se, que evacuamos. Esse ferido contou que alguns não estavam mortos e que as tropas inimigas os esfaqueavam nas pernas e, se reagissem, eram mortos. O que evacuamos terá ouvido dizer: "este está morto!" e foi a sorte dele!








Carlos Magro
O Caçador



Em todos os destacamentos do Exército por onde andamos, fomos sempre muito bem recebidos. Todas as "cervejolas" que consumíamos eram "à borla".
Porque, para além de levarmos o correio e outro género de coisas, pedíam-nos para irmos à caça, pois a alimentação era muita fraca e mal confeccionada.
Então, quando regressavamos da caça com os animais nos estribos do Héli, o almoço era logo melhorado! Quando íamos embora pedíam-nos para aparecermos mais vezes, pois alguns estavam em sítios por onde nunca tinha "passado cristo"!
Cacei duas chitas e a carne foi para os pretos (eles comiam a carne de chita)e, para nós, tiraram-nos a pele dos "bichos". Coloquei-as a secar no telhado e, num dia de ventania, foram-se!

Cacei javalis, palancas, etc. e havia pessoal que se dava ao luxo de matar elefantes para lhes tirar os dentes e o rabo. Ainda guardo, como recordação, um dente de um javali que matei.
Como caçador, vivi um episódio aborrecido quando, um dia que fomos à caça e matei uma fêmea, ao aterrarmos para a transportar, verificamos que estava prenha e com o feto no chão, fora da barriga. Deixámo-la ficar.













Carlos Magro
As Evacuações






Numa evacuação o helicóptero vinha cheio de pessoal ferido e, durante duas horas, tive de vir de cócoras a segurar para cima, por causa do sangue, a perna de um soldado que tinha ficado sem o pé no rebentamento de uma mina.

Noutra evacuação os feridos estavam num local com árvores bastantes altas e para os ir buscar o helicóptero tinha que descer e subir na vertical, pelo que os soldados tiveram que cortar as árvores, tendo-se perdido imenso tempo e efectuado manobras bem arriscadas. As pás do Héli quase batiam nas árvores!