quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

Rogério Magro
Operação Lumai


Nunca percebi porquê, mas era normalmente aos fins-de-semana que nos eram comunicadas as operações em que iríamos tomar parte.
Para quem está no mato, os dias são todos iguais e então porquê comunicar nos dias de sábado ou domingo a preparação para uma operação militar?!
Nunca o soube, mas mais uma vez assim aconteceu.

Era domingo, o Alferes Castro transmitiu-me que no dia seguinte o pelotão partiria para mais uma operação sem adiantar mais pormenores, dizendo-me simplesmente que era uma operação com a duração de quatro dias e para proceder à requisição de rações de combate para quatro dias.

Pela manhã do dia seguinte partiu o pelotão em Unimog’s e, percorridos uns 90 km, estacionamos no quartel dos fuzileiros especiais que estavam aquartelados na margem do rio Lungué Bungo, junto a uma ponte sobre aquele rio que, segundo constava, o seu projecto era da autoria do famoso engenheiro de pontes Edgar Cardoso.


Ficamos lá o resto do dia e aí dormimos, tendo à noite sido informado que eu com a minha secção de combate e a do Furriel Santos partiríamos de bote com os fuzileiros que nos transportariam por rio e nos deixariam perto do Lumai, local da operação que iríamos efectuar.

O Alferes Castro seguiria no dia seguinte, já que os fuzileiros não podiam dispor dos botes suficientes para nos transportar a todos de uma só vez.

Aproveitei nessa noite para confraternizar com um “fuzo” que era do Porto e que eu conhecia bem das jogatanas de bola que fazíamos no célebre campo das “caveiras” como lhe chamávamos e que ficava, ao tempo, junto ao cemitério de Agramonte. Recordo-me de me ter encontrado com esse fuzileiro por diversas vezes, quer quando passava pelo Lucusse, quer quando a tropa parava no seu quartel. Ele foi a primeira pessoa que, mal eu desembarquei do comboio no Luso, proveniente de Nova Lisboa, me abordou gritando: “- Ó Barrigana!”

Dei-lhe um abraço e disse-lhe que ia para o Lucusse.
Diz-me ele: “- é pá fica perto de onde eu estou!” (por mais que me esforce, não me consigo recordar do seu nome).

Voltando ao tema da operação: pela manhã do dia seguinte partimos em cinco botes, cada bote levava quatro militares e um fuzileiro que tripulava o bote. Começou a chover e a chuva durou quase todo o dia, o que não era habitual naquelas paragens.

Como era a primeira vez que fazia, de bote, uma “excursão” rio acima e ainda para mais num rio bastante sinuoso que, várias vezes nos obrigou a entrar pela margem do rio adentro, já que com a velocidade do bote o fuzileiro não tinha tempo de fazer a curva para, logo de seguida, entrarmos noutra curva do rio.

Enfim…, como íamos já todos encharcados pela chuva era, mais banho, menos banho. Lembro-me muito bem de ter perguntado ao fuzileiro de como procederíamos caso fossemos atacados da margem do rio e responde-me ele:
“- Se, entretanto, com o tiroteio o bote não afundar, vamos direitos ao local de onde vêm os tiros e desembarcamos, ou você quer atirar-se fardado ao rio e ir à pesca submarina com a G3?”
Claro que me calei e comecei a meditar sobre a possibilidade de sermos atacados pela margem do rio.

Continuava a chover e já não havia cigarros nem o isqueiro acendia até que, cerca das duas da tarde, os botes pararam e os fuzileiros indicaram-nos o local de desembarque.
Desembarcamos e os “fuzos” partiram de regresso ao seu quartel.

Ficamos ali na mata junto a um morro e foi um problema conseguir transportar as caixas das rações de combate, já que as mesmas se encontravam todas desfeitas devido á chuva.

Entramos na mata (eu não sabia se estávamos longe ou perto da povoação) com as caixas das rações desfeitas e alagados até aos ossos.

Como era eu quem comandava a tropa e achava praticamente impossível fazermos uma progressão face ao problema do transporte das rações de combate, chamei o Furriel Santos e, após uma pequena troca de impressões, ele ofereceu-se para, com a sua secção, tentar chegar à povoação e arranjar maneira de nos virem ajudar a transportar as rações.
Informei-o de que, segundo indicação dos fuzileiros, a povoação ficaria para a direita do local onde nos encontrávamos e que lá se encontrava uma guarnição da polícia composta de quatro homens. O Santos lá arrancou com o seu pessoal e eu disse-lhe:
“- Ó pá segue em frente a ver se encontras a picada ou algum trilho e depois segue pela direita.”

Eu fiquei com algum receio de ele se perder e, entretanto, ficar noite e termos de dormir ali naquele sítio e todos alagados.

Passada aí cerca de uma hora, começamos a ouvir o barulho do motor de uma viatura que, à medida que se aproximava do local onde estávamos, se vinha cada vez a ouvir mais intensamente.
Avancei em frente com parte do meu pessoal e o restante ficou junto às rações e aí a uns 500 a 600 metros estávamos junto à picada e, passado algum tempo, apareceu o Santos dentro de um Land Rover que era conduzido pelo comerciante residente na povoação, o qual se disponibilizou a nos prestar auxílio, já que a polícia não tinha viatura.

Carregamos para o Land Rover as rações de combate e lá seguimos para a povoação que se situava a cerca de três Km do local onde tínhamos estacionado.

Fomos recebidos pelo Sub-Chefe da polícia que comandava a guarnição e o mesmo já tinha dado instruções para acender o forno de cozer o pão que lá existia e foi a maneira do pessoal secar as fardas rapidamente.

Na povoação existia uma boa e grande casa que teria sido onde, em tempos, existiu um Posto Administrativo e onde teria habitado o respectivo Chefe de Posto. A casa encontrava-se abandonada e uma parte dela tinha sido ocupada pelos quatro polícias.
Ficamos instalados nessa casa.

O comerciante era um homem já maduro aí de uns sessenta anos, natural da Madeira, mas com alguns anos de Lisboa como taxista, segundo nos contou. Era o único branco que lá vivia há já muitos anos, de seu nome Aguiar, com o qual criamos, nos dias que ali permanecemos, uma boa amizade.

A população nativa andaria aí à volta de cerca de 2.000 pessoas.

Depois de ter instalado o pessoal e distribuído as tarefas inerentes à segurança, ficamos a conversar com o sub-chefe da polícia que estava em sobressalto, pois tinha informação que iria haver uma reunião na povoação com elementos com algum peso no MPLA.

Após ir verificar a segurança que tinha montado à casa, já que a polícia só tinha uma sentinela que era dividida por três turnos durante a noite e o sub-chefe só estava de serviço durante o dia, lá me fui deitar no chão da sala, mas já com a roupa toda seca, pois o forno de cozer o pão deu uma grande ajuda e tivemos também o privilégio de comer pão quente que os polícias amavelmente cozeram para a tropa.

No dia seguinte, ao fim da manhã, apareceu o Alferes Castro com o resto da tropa, a qual veio logo direito à povoação porque os fuzileiros os deixaram no local do rio com acesso à povoação e não a três ou quatro Km como nos tinham deixado a nós no dia anterior.

Feitas as apresentações ao sub-chefe da polícia e ao Sr. Aguiar a, tropa recém chegada instalou-se no local onde eu a tinha instalado no dia anterior, embora repartida por outras divisões, já que a casa era grande e havia espaço suficiente para todos.

Os polícias voltaram a cozer mais pão, o que muito nos ajudava a comer as rações de combate.

No dia seguinte, a meio da tarde, o Alferes Castro reuniu com os três furriéis e informou que naquela noite iríamos fazer um envolvimento à povoação à excepção do trilho de acesso à mesma e que já tinha conhecimento do local onde se iria efectuar a reunião com os quadros do MPLA e que depois daria ordem para o assalto ao local da reunião.

Correu tudo muito bem, foi efectuado o assalto ao local da reunião, não foi dado um único tiro, até porque a visibilidade era diminuta, pois só havia uma pequena fogueira dentro do “kimbo” onde decorria a reunião, tendo sido feitos vinte e um prisioneiros, os quais foram transportados para a sala da casa onde nos encontrávamos.

Foram efectuados alguns interrogatórios aos prisioneiros, ficando estes todos presos na sala, vigiados dia e noite por alguns soldados.

Diariamente, uma vez de manhã e outra de tarde, os prisioneiros eram levados em fila indiana ao mato para fazerem as suas necessidades fisiológicas.

Aconteceu que, em determinado dia, logo ao amanhecer, vimos entrar pela povoação um nativo amarrado pelas mãos com umas lianas e logo atrás dele outro negro com uma zagaia numa das mãos.
O homem que trazia o prisioneiro chegou junto do alferes e disse-lhe:
“- Eu sou português, fui tropa nos Luanda. Este tipo fugiu, eu vi e fui atrás dele com a zagaia e prendi-o, bandido não pode fugir.”

Este homem de seu nome João, vivia na aldeia e andou uma tarde e uma noite no encalço do fugitivo e prendeu-o. Eu virei-me para o alferes e disse-lhe:
“- Este homem merecia uma recompensa.”
“- É verdade diz o alferes, mas não temos nada para lhe dar!
Diz logo o sub-chefe da policia:
“- Eu tenho ali um garrafão de vinho e damos-lhe um púcaro que o homem bem merece!”

E assim foi, o sub-chefe encheu o púcaro que era para aí de meio litro e o nosso homem bebeu-o de uma só vez!
“- Vai outro?” Perguntei eu.
“- Vai mesmo outro”, respondeu ele e emborcou mais meio litro de uma só vez, e o João lá foi para a sua palhota, mas já ia a marchar com o passo trocado.

No dia seguinte chegou uma coluna militar do Luso que transportou os prisioneiros.

Nós já tínhamos cumprido a nossa missão que era de quatro dias, mas já tinham passado oito e ainda ali nos encontrávamos em situação cada vez mais precária:
- tinham acabado as rações de combate;
- os polícias já não nos podiam cozer mais pão porque senão ficavam eles à rasca;
- iam-nos desenrascando umas couves da horta que tinham plantado, com as quais o pessoal ia improvisando umas sopas de água com couves;
- o Sr.Aguiar ia fiando o pouco que tinha e eu ainda fui convidado por ele para almoçar e recordo-me que comi um arroz de cogumelos silvestres feito por ele, coisa tão boa que nunca mais me esqueci de tal.

A situação piorava de dia para dia, pois era raro o dia em que não havia problemas com a povoação devido aos soldados andarem atrás das galinhas que os nativos, como é óbvio, escondiam e que os soldados, com fome, queriam “palmar”.

Eu, entretanto, não me sentia bem indo almoçar à casa do Aguiar, até porque ele só me convidava a mim, talvez porque lhe causei uma impressão marcante, julgo eu, quando ele nos foi buscar ao mato e observou a maneira como eu dirigi e consegui pôr o pessoal a secar-se dois de cada vez, no forno de cozer o pão, enquanto os outros faziam a segurança e da maneira como eu acalmei o sub-chefe que estava todo acagaçado de medo à conta das informações que lhe tinham chegado.

Como não me sentia muito confortável com aquela situação dos almoços do Sr. Aguiar, expliquei-lhe os motivos e ele compreendeu e respondeu-me que nem que quisesse, também já não tinha possibilidade de convidar mais alguém.

Fiquei sempre muito reconhecido ao Sr. Aguiar e fiquei muito chocado quando, passados alguns meses, o encontrei no Luso, numa esplanada a beber uma cerveja e lhe perguntei se a tropa já lhe tinha pago o que ele tinha cedido fiado e ele respondeu-me que não.

Ainda interpelei o Alferes sobre este caso, mas ele não deu muita importância ao assunto, respondendo eu que muito lamentava tal facto.

Já estávamos naquela situação havia catorze dias, portanto havia já dez dias que estávamos a sobreviver com mangas (algumas ainda verdes) apanhadas das árvores, já não havia frangos na povoação, desapareceram; uns roubados e outros escondidos a sete chaves pelos seus donos, alguns soldados começaram também a roubar mandioca e a tentar cozinhá-la e outros a comê-la crua.
Então fui ter com o Alferes e disse-lhe:
“- Meu Alferes, isto não pode continuar assim! Não vai demorar muito tempo para o pessoal começar aos tiros dentro da povoação para roubar para comer e é melhor o meu Alferes ir ao rádio da polícia e mandar uma mensagem urgente para nos virem buscar, senão isto vai acabar mal!”

Ele lá foi falar com o sub-chefe e veio-me transmitir que mandou uma mensagem extremamente dura para o Comando. Deu resultado a mensagem e fomos informados que no dia seguinte os fuzileiros nos iriam buscar a todos.

A meio da manhã do dia seguinte lá apareceram os fuzileiros com os botes, só que o número dos botes era o mesmo, pelo que cada bote levava mais dois militares e, nalguns casos mais três, do que seria normal.

Então aconteceu o seguinte; os fuzileiros começaram a aperceber-se de que o excessivo consumo de gasolina de cada bote, dado o peso a mais que levavam, iria resultar que não houvesse combustível suficiente para chegarmos ao destino.

Esta situação começou a verificar-se quando o primeiro bote ficou sem gasolina e teve que utilizar o jerrican de reserva que cada bote levava, situação esta que se veio a verificar também com os demais botes até que, a páginas tantas, aparece um bote cujo fuzileiro dá instruções para que cada bote entregue a gasolina do seu depósito para possibilitar que dois botes cheguem ao quartel dos fuzileiros e venham trazer reserva de gasolina, e assim se fez.

Dois botes partiram com a gasolina existente e os restantes ficaram à deriva no rio Lungué Bungo.
Aí eu lembrei-me do que me tinha dito o “fuzo” caso fôssemos atacados da margem, pois agora com os botes à deriva era mesmo só remar com as G3 para chegarmos à margem e foi isso que eu disse meio a brincar ao fuzileiro que conduzia o bote e, pelo sorriso que fez, penso que não gostou nada da conversa.

O pessoal dos outros botes não ouviu o meu desabafo, mas a verdade é que passados alguns minutos começaram a atirar granadas para o meio do rio e rapidamente o rio ficou cheio de peixes mortos a boiar.
Diz-me o fuzileiro que conduzia o bote onde eu ia:
“Os ‘fuzos’, quando alguma coisa corre mal, é assim que festejam!”
Disse eu: “- Já percebi.”

Depois de cerca de uma hora à deriva, mais coisa menos coisa, lá apareceram os botes com a reserva de gasolina e lá seguimos sem mais problemas até ao quartel dos fuzileiros, onde chegamos muito perto de anoitecer.

No dia seguinte lá seguimos de unimog para o Lucusse, regressados de uma operação de quatro dias que demorou catorze.

Mais tarde fomos informados de que, efectivamente, tínhamos capturado dois importantes comissários políticos do MPLA.


1 – Lumbala
2 – Sessa
3 - Lucusse






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