sexta-feira, 19 de abril de 2013

Rogério Magro
A Pasta


Corria o mês de Maio de 1968 e, na véspera do dia de S.Nord Atlas, sou chamado ao gabinete do capitão, apresento-me e diz o Capitão Azuil de Carvalho:

- "Vá pedir a pasta ao Sargento Castanheira para amanhã embarcar no Nord e ir ao Luso ao banco levantar este cheque para pagar os ordenados no fim do mês, mas atenção, adverte-me o capitão, agora veja lá se cai como o outro sargento que caiu no conto do frasco com pérolas preciosas".

Ao tempo era muito usual cá, na chamada metrópole, o conto do vigário do vigésimo premiado. Tratava-se de uma vigarice já com barbas, mas havia sempre quem caísse nesse famoso conto do vigário.
Em Angola o conto do vigário, em substituição do vigésimo premiado, era a estória da garrafinha de martini cheia de pedras preciosas e diamantes e, tal como cá com o vigésimo, em Angola havia sempre quem fosse na vigarice das pedras preciosas.
O negócio era bom demais e as pessoas, com a ganância, compravam uma garrafinha cheia de "pedras preciosas" por cem ou duzentos contos (500 ou mil euros) a um tipo que contava uma estória bem contada; as "pedras preciosas" valiam uns milhares largos, dizia, e havia sempre um cliente que ia na conversa e, depois as ditas pedras que, segundo diziam, eram muito bonitas e até pareciam verdadeiras, não eram sequer pedras semi-preciosas e os cem ou duzentos contos lá tinham voado.
Pelos vistos um sargento que tinha ido levantar a "massa" para pagar aos militares caiu na vigarice e lá foi parar à "grelha".

Na terça-feira lá embarquei no Nord Atlas e o capitão, à entrada para o avião, tornou a lembrar-me da garrafa de martini.

Sair do mato de avião para ir à cidade do Luso, que era uma cidade onde não faltava nada, havia de tudo; restaurantes, hotéis, cinema e etc., equivalia a estar uma semana de férias, pois só regressaria na terça-feira seguinte.


A cidade do Luso (hoje Moxico) distava de Gago Coutinho aí cerca de 400 Kms e como o Nord Atlas ainda fazia paragem em Gangamba para largar carga e embarcar pessoal, só desembarquei no Luso pelo meio da tarde.

Sempre que passava pelo Luso e dava para passar a noite, ia ficar na Pensão Minhota do Sr. Figueiredo que era natural de Santo Tirso.

Arranjei boleia para a cidade, já que o aeroporto se situava no extremo da cidade e fui direitinho para a pensão e lá fiquei hospedado em regime de pensão completa.
Tomei um duche, arrumei a farda, vesti roupinha fresca a estrear; calças, camisa e sapatos novos, comprados em Abrantes antes de embarcar no Vera Cruz, em Lisboa.
Sentado na esplanada a saborear uma Cuca fresquinha e um prego no prato (maravilha das maravilhas para quem, uns dias antes, tinha andado no mato aos tiros e a comer ração de combate), sentia-me um privilegiado tal como os militares da guerra do ar condicionado.
Convém recordar que na dita guerra do Ultramar, existiam três tipos de guerra, a saber:
- a guerra do ar condicionado que era a guerra dos militares que se encontravam nas cidades;
- a guerra do arame farpado que era a guerra dos militares que nunca saiam do quartel no mato e que estava cercado pelo arame farpado, também chamados de freiras, por nunca saírem do convento;
- e a guerra dos militares operacionais que andavam em operações que faziam as escoltas às colunas civis de reabastecimento aos quartéis que existiam no mato.

Quarta-feira, dia seguinte ao da minha chegada ao Luso, cometo um erro tremendo! Fui ao banco com a pasta e levantei o cheque. Recebo 235 contos em escudos angolanos que enfio na pasta e só depois de ter saído do banco é que caí em mim. Parei e disse para comigo:
- "Agora vais andar até terça-feira próxima com a pasta atrás de ti?! Arranjaste a bonita!"

È aqui que começa a minha odisseia com a pasta, episódio que nunca mais esquecerei.
Levo a pasta, agora com o "cacau", para o quarto e a partir daí, ao pequeno almoço, ao almoço e ao jantar, sempre com a pasta atrás de mim, pareço um autêntico executivo em mangas de camisa! O que eu fui arranjar, mas o pior ainda estava para vir!
Aí talvez pela sexta-feira, estou eu na esplanada a beber uma cerveja e com a pasta entre as pernas, aparece-me o Sargento Isidro da força aérea que estava em Gago Coutinho. Eu e o Sargento Isidro ficamos amigos, após termos sido os protagonistas, eu o provocador de uma cena passada no bar de sargentos ele o autor de um murro que arrebentou com as ventas de um furriel que se meteu na provocação.
Após mais uma rodada de cervejas, o Sargento Isidro propôs irmos à noite ao cinema, mas não queria ir fardado e eu emprestei-lhe uma camisola que tinha de reserva. Ficamos de nos encontrar após o jantar.
Não me parecia, melhor dizendo: não podia ir de pasta na mão para o cinema, tinha que encontrar uma solução para guardar a pasta em lugar seguro. Ainda pensei pedir ao Sr. Figueiredo que me guardasse a pasta no cofre, mas aí, pensei eu, ia levantar suspeitas e curiosidade para saberem o que eu tinha na pasta.
Acabei por resolver guardar a pasta dentro do guarda-fatos ou guarda-vestidos, como também lhe chamavam à época.
O quarto tinha duas portas, uma de entrada junto às escadas e outra do lado oposto, que dava acesso à casa de banho. As duas portas tinham chaves que estavam comigo, mas para além das fechaduras e das portas serem de fraca segurança, com certeza que devia haver duplicados das mesmas. O guarda-fatos não tinha chave.
Aproximava-se a hora do encontro e eu estava muito indeciso e preocupado com a situação, mas lá meti a pasta a um canto do guarda-fatos e fechei a porta do mesmo que, constatei, fechava mal devido a folga, mas lá ficou encostada.
Desci e encontrei o Sargento Isidro à minha espera e lá fomos a caminho do Cine-Luena.

Compramos os bilhetes, entramos e lá nos sentamos nos lugares respectivos. Não me lembro do nome do filme, nem tão pouco me consegui concentrar nele. O meu pensamento estava na pasta e na "guita".
Comecei a matutar no que o capitão por duas vezes me tinha dito sobre o conto do vigário das pedras preciosas e veio-me à cabeça que alguém da pensão me poderia ter visto sair sem a pasta e ir ao quarto roubá-la e eu chegar a Gago Coutinho sem a pasta nem "massa" para pagamento aos militares.
Teriam passado talvez uns quinze a vinte minutos após o início do filme e eu a ficar com os nervos em franja! Vai daí, virei-me para o sargento e disse-lhe:
- "Estou mal disposto, alguma coisa me caiu mal, vou-me embora porque me apetece vomitar".

"Pirei-me" do cinema e comecei a andar, quase a correr, em direcção à pensão. Entro, subo as escadas, abro a porta e dou com a porta do guarda-fatos meio aberta!
"Ai meu Deus, lá se foi a pasta, estou bem arranjado!"
Abri totalmente a porta e lá vi a pasta no canto. Peguei nela, abri-a, vi os maços de notas e despejei o dinheiro em cima da cama e comecei a contá-lo. Estava todo, respirei de alívio!
Nessa noite dormi com a pasta debaixo do travesseiro. Nunca mais a larguei até embarcar na terça-feira no Nord Atlas de regresso a Gago Coutinho.

Ao desembarcar lá estava o capitão à minha espera que me acompanhou até à secretaria onde estava o Sargento Castanheira para este contar o dinheiro e confirmar que estava tudo em ordem. Deve ter respirado de alívio também, sem nunca lhe ter passado pela cabeça o martírio que eu passei com a maldita pasta.

Os oito dias de férias na cidade do Luso foram um pesadelo para mim e ainda hoje, passados 45 anos recordo este episódio com alguns arrepios e tudo por causa do erro de ter ido levantar o dinheiro no dia a seguir à chegada ao Luso.

Ao almoço, na messe de sargentos no dia do meu regresso, lá me apareceu o Sargento Isidro o qual tinha regressado no dia seguinte à ida ao cinema a Gago Coutinho, que quis saber o que me tinha acontecido e eu lá lhe contei uma estória de má disposição ocasionada talvez pelo jantar ingerido na pensão e nesse dia à noite lá fomos até ao bar dos sorjas beber umas cervejolas até o bar fechar e nos irmos deitar já bastante encharcados sem termos apanhado cacimbo algum.







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