quinta-feira, 25 de outubro de 2018

Abílio Magro
Duas Operações Atribuladas




Ao contrário do que muitos pensam, a vida do pessoal do “ar condicionado” não era pêra doce em Bissau nos anos que antecederam a independência da ex-Guiné Portuguesa.
Entre os militares, todos aqueles que prestavam serviço nos quartéis instalados nas cidades ou seus arredores e os que, nos quarteis do mato, raramente saiam do arame farpado, devido, sobretudo, às funções que desempenhavam (cozinheiros, administrativos, etc.), eram apelidados de “pessoal do ar condicionado”
Eu, embora colocado num quartel que se situava já nos arredores de Bissau (QG/CTIG - Instalações Militares de Santa Luzia), acabei por fazer algumas rondas nocturnas ao Bairro Negro (Cupelom – vulgo pilão) e algumas seguranças às instalações da sede da PIDE/DGS, em Bissau, conforme já referi em capítulo anterior.
Muito embora nessas tarefas nunca tenha enfrentado graves perigos para a minha integridade física, acabei, em dois dados momentos, por sofrer internamentos no HMBIS - Hospital Militar de Bissau.

O HMBIS era na altura considerado, a nível militar, como um hospital de ponta, dada a qualidade do equipamento instalado e das equipes médicas de que dispunha.
O Hospital de Bissau (civil), que tem hoje o nome de Hospital Nacional Simão Mendes, possuía nos arredores de Bissau um Pavilhão de Tisiologia que entrou em funcionamento em 1951 e cujo projecto teve a autoria de dois arquitectos portugueses - Lucínio Guia da Cruz e Mário de Oliveira. Com o início da guerra na Guiné, naquele pavilhão foi então instalado o Hospital Militar 241 que a partir de 1972 passou a designar-se HMBIS – Hospital Militar de Bissau, até à independência da colónia em Setembro de 1974.

Em 1973 prestava serviço na Secretaria do HMBIS o meu irmão Álvaro que, sabendo que eu sofria das varizes desde pequeno e que as mesmas me causavam enorme desconforto naquele clima com temperaturas acima dos 40º C, e que quando fazia rondas ao “pilão”, segurança à DGS, Sargento da Guarda ao QG/CTIG, etc, serviços em que tinha de usar obrigatoriamente o cinturão com cartucheiras cheias de balas cujo peso mais agravava o estado das varizes causando-me maior desconforto, terá decidido falar com alguém do Hospital Militar no sentido de me resolverem o problema com alguma celeridade.
Resolveu então convencer-me para que eu fosse a uma consulta de Cirurgia Vascular ao HMBIS.
Claro que eu, conhecendo a fama (injusta, sei-o hoje) que os hospitais militares tinham e conhecendo também a quantidade de feridos (ligeiros, graves e muito graves) que diariamente davam entrada naquele hospital, logo o despachei, dizendo-lhe:
“Estás maluco pá, isto aqui é só carne para canhão, os médicos não têm mãos a medir e estão aqui é a ganhar prática, querem lá saber de umas míseras varizes! Eu provavelmente irei ser atendido no dia de S. Nunca à tarde!”
Respondeu-me que não era bem assim, que os médicos eram bons, que eram civis que estavam ali a cumprir comissão militar, re béu béu, pardais ao ninho, insistiu, insistiu, e lá me convenceu.
Efectivamente não passou muito tempo até ser atendido em consulta externa e lá me inspeccionaram as pernas, informando-me da real conveniência da operação cirúrgica, que seria simples e com apenas alguns dias de internamento, internamento este que ocorreu também poucos dias depois. Internado no HMBIS, na data marcada para a cirurgia houve que iniciar os preparativos para a mesma.
Consistiam esses preparativos na eliminação capilar da área a ser intervencionada. Sou chamado a uma pequena sala de enfermagem onde um 1º cabo aux. enf. se afoitava para me depilar toda a perna direita, iniciando os trabalhos na zona púbica. Ora, as minhas varizes, como é costume em quase toda a gente, situavam-se na zona que fica mesmo atrás do joelho. Chamei à atenção do 1º cabo para esse facto, porque me parecia exagerada a depilação e porque temia que, naquele clima de altas temperaturas e humidade do ar excessiva, o início do crescimento de nova pelagem na zona púbica me viesse a causar enorme desconforto, agravado pelo constante suor na zona. O 1º cabo mostra-me então uma gravura onde, numa perna para cirurgia às varizes, estavam pintadas a vermelho as áreas a serem rapadas e estas coincidiam exactamente com aquelas que ele se preparava para “atacar”.
Os argumentos dele não me convenceram e lá lhe supliquei que me deixasse a zona púbica em paz e ele acabou por me fazer a vontade. Vesti uma bata de cirurgia e lá fui para o “matadouro” onde me mandaram sentar na cama e me espetaram a agulha de uma seringa na zona lombar, junto à coluna vertebral.
Sabia que ia ser anestesiado, mas não sabia que era daquela maneira. Talvez me tenham dito que era uma epidural ou raquidiana (anestesia da cintura para baixo), mas, à época, sabia lá eu o que era isso. Magro como era, de nome e de físico, deu-me para imaginar a agulha a espetar-se numa vértebra e comecei a ver tudo turvo. Julgando ser a anestesia a fazer o seu efeito, inclinei-me para me deitar e julgo que me retiraram a agulha antes da aplicação total do anestésico.
Já deitado, levantam-me a bata e deparam, estupefactos, com a zona púbica povoada de pelos. Ouço alguém resmungar e dar ordens à assistente (havia lá uma senhora a ajudar na cirurgia, talvez fosse enfermeira, não sei) para que me fosse feita a barba púbica sem demoras. A pobre “enfermeira” lá teve de efectuar o serviço à pressa e notei que, para o acto de barbearia, ela pegava nas minhas várias “peças” anatómicas com as pontas dos dedos, como quem pega num farrapo nojento.
Enquanto a “barba” era feita, fui pensando na sorte do pobre 1º cabo que, para me ser simpático, não efectuou adequadamente a depilação necessária e iria, muito provavelmente, sofrer um castigo por minha culpa, o que felizmente parece não ter sucedido, segundo me constou depois. A cirurgia lá se iniciou e, segundo vim a saber depois, iriam retirar-me a veia afectada (safena) e que era um tratamento definitivo para as varizes.

Teriam então de me fazer um corte junto à virilha, dois atrás do joelho e um outro na canela, junto ao pé.
Com o tipo de anestesia que me foi ministrado eu continuava acordado, mas com a parte inferior do corpo algo adormecida e quando me fizeram os vários cortes na carne a “coisa” até que não correu mal, mas quando me fazem o primeiro corte da veia eu só não mandei uma valente “carvalhada” porque estava ali uma senhora, mas manifestei a indignação suficiente para interromper a “brincadeira”. Foi então que o cirurgião me pediu para levantar a perna direita, o que fiz naturalmente, para meu espanto e dos demais presentes. A seguir pede-me para levantar as duas pernas ao mesmo tempo. Ainda para maior espanto de todos, levantei ambas as pernas. Ou seja: quer tenha sido por anestesia insuficiente, quer pelo tempo perdido na rapagem dos pelos púbicos, eu já estava “vivinho da silva” da cintura para baixo. Foi então que o cirurgião mandou ministrarem-me morfina que me fez ficar completamente “pedrado”, vendo o candeeiro cirúrgico a rodar constantemente e a minha cabeça também. E assim continuaram com a operação, acabada a qual regressei de maca à enfermaria onde o meu irmão Álvaro me aguardava e que, ao ver-me a virar constantemente a cabeça de um lado para o outro, não estava a perceber nada do que se estava a passar.
Com a perna ligada e muito apertada com uma ligadura elástica, a recuperação lá se efectuou durante umas duas ou três semanas com algumas noites mal passadas e sem poder tomar banho, mas depois daquelas peripécias cirúrgicas eu sentia-me recompensado sabendo que me tinha finalmente livrado das malditas varizes, até que, retirados os pontos e seguindo eu de imediato para o chuveiro, deito um olhar às traseiras da perna direita e … as “gajas” continuavam lá!
Quantos impropérios lancei mentalmente à equipe médica, ao meu irmão Álvaro e a todos aqueles que se atravessavam na minha mente. Tantos trabalhos passei e, afinal, continuava com varizes na perna direita! Cheguei até a pensar se não se teriam enganado na perna!
Durante alguns tempos matraqueei a cabeça do meu irmão Álvaro com protestos de indignação até que ele lá me conseguiu nova consulta de cirurgia vascular e lá fui eu, muito aborrecido, apresentar o assunto a quem me operou. O cirurgião lá me foi explicando que me tinham retirado a veia safena, mas que eu tinha outras veias doentes e que não podiam retirar mais nenhuma e que a solução era retirar a zona afectada e fazer uma laqueação e, de seguida, puxa da esferográfica e marca-me a perna com uns traços nos locais onde me iria cortar (fiquei com muito boa impressão desta consulta, senti-me na carpintaria).
Novo internamento e, chegada a hora de nova operação, lá vou eu novamente à “barbearia” onde o 1º cabo me rapa tudo (zona púbica incluída) e eu nem pestanejei, pois o moço deverá ter recebido alguma admoestação pelo seu desempenho na primeira operação.
Lá vou eu novamente à “faca”, mas desta vez apenas me deram anestesia local por trás do joelho direito, zona onde me iam efectuar os cortes. Lá me retiraram a parte da veia afectada, laquearam e voltaram a usar uma ligadura elástica com a qual me “embrulharam” a perna, muito apertadinha. Para regressar à enfermaria não havia macas disponíveis e lá vou eu ao pé-coxinho, agarrado ao 1º cabo “barbeiro”. Surreal!
Resumindo: na primeira operação só me raparam os pelos atrás do joelho, quando era necessário rapar a perna toda e a zona púbica. Na 2ª operação raparam-me a perna toda e a zona púbica, quando só era necessário rapar atrás do joelho!
Mas a coisa estava a compor-se e ansiava por ver o resultado final. Desta vez o tempo de internamento foi inferior e deram-me alta passado pouco tempo, mas segui com a perna “amarrada” para o meu quarto onde fiquei em convalescença.
Só saía para ir à messe de sargentos tomar as refeições e foi nesse trajecto que me apercebi que coxeava um pouco e que me parecia ter uma perna mais curta que a outra por não conseguir esticar totalmente a perna direita. Mais uma vez furibundo com a situação, dirijo-me ao médico da CCS/QG/CTIG a manifestar-lhe a minha preocupação e alguma revolta com toda esta história. Lá me explicou de como foi feita a laqueação e de como a veia ficou mais curta, sendo, portanto natural que houvesse alguma dificuldade inicial em esticar a perna, pelo que eu deveria dar uns passeiozitos todos os dias.
Lá comecei a dar uns passeios por ali perto e a coisa foi-se compondo, mas passado algum tempo, lá estavam as varizes outra vez!
Farto de todas estas peripécias, resolvi esquecer o assunto e, já na metrópole, consultei um cirurgião vascular de renome na cidade do Porto que me deu o seu veredicto final: “Eu só vejo uma solução para isso, é a faca!”
Vim a saber que este cirurgião era um grande comerciante e que gostava de resolver tudo “à facada”, isto é: qualquer doente que lhe caísse nas mãos era aconselhado a ir “à faca”. O que ele queria era operar!
Liguei à terra e deixei correr o marfim.
Ainda tenho varizes, já me habituei a elas e a vida vai correndo.




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