segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

Abílio Magro
O Meu 25 de Abril


No dia 25 de Abril de 1974, logo pela manhã, com uma molhada de documentos debaixo do braço, dirigi-me como de costume, à repartição que possuía o selo branco do CTIG (1ª, 2ª ???) a fim de o apor, nas assinaturas do Brig. Alberto da Silva Banazol, Comandante do CTIG.
Esta repartição era chefiada por um Major do SGE, já de meia idade e de quem já não me recordo o nome.
Eram talvez 9h30 da manhã, estava eu muito entretido a "trincar" o Banazol com o selo branco e entra o Capitão Cirne (julgo que Miliciano) e, virando-se para o Major, de braços abertos e punhos cerrados "grita", mais ou menos em surdina: - "vive la revolution, vive la revolution!" e continua: "o Marcelo refugiou-se no Quartel da GNR, no Carmo e está cercado pela tropa!".
Claro que orientei logo as "antenas" para o Capitão Cirne e aguardei o desenvolvimento da conversa, mas este deitou-me um olhar que transparecia alguma felicidade, mas algum receio também, e diz: -"Furriel ...!" como quem diz: "Tem lá calma pá e vê lá o que vais para aí espalhar!".
A conversa pareceu-me ter alguma consistência e como, umas semanas antes, tinha havido aquele episódio da coluna das Caldas da Rainha que avançara sobre Lisboa, fiquei intrigado e, na CSJD tratei de contar aos meus camaradas o que tinha ouvido e aguardar algum "feed back".
Nessa altura já o tal 1º Sargento, a quem o Major Lobão chamava de "gebo", tinha terminado a comissão e tinha sido substituído por um 1º Sargento que usava sempre chapéu de pala. Em 18 meses de Guiné, julgo nunca ter visto nenhum militar do Exército usar chapéu de pala.
O homem tinha mesmo queda para polícia e, tendo ouvido o meu relato, tratou logo de dizer: - "Tenha cuidado com o que anda para aí a dizer, que ainda pode ter chatices...". Claro que eu traduzi para: "Põe-te a pau que eu conheço uns gajos na Pide e não tarda nada vais até Guiledje tomar conta daquilo sozinho!" Enfiei a viola no saco.
Entretanto o «PIFAS» (Programa de Informação das Forças Armadas - julgo que era assim) dedicava-se à música sinfónica, o que fazia pensar que efectivamente havia qualquer coisa no ar, embora ainda se tivesse ouvido, nesse dia, um discurso qualquer do Ministro dos Negócios Estrageiros - Dr. Rui Patrício. Mas, pasmem-se, também se ouviu, aqui e ali, alguma música do Zeca Afonso! Das mais suavezinhas, é certo, mas - alto lá, que aqui há coisa!
Aguardava-mos com alguma ansiedade pela hora do almoço, altura em que o «PIFAS» transmitia um serviço noticioso mais elaborado.
Na messe de Sargentos havia uma aparelhagem de som com várias colunas espalhadas pelo recinto - Bar, Esplanada e Sala de Jantar.
Na sala de jantar as mesas eram para 4 pessoas e, embora não houvesse lugares marcados, os "habitués da casa" sentavam-se sempre nos mesmos lugares.
Numa mesa à minha direita, com outra de permeio, sentavam-se quatro camaradas sui generis, já que dois deles eram completamente fanáticos pelos seus clubes (um do Belenenses e outro do Sporting) discutindo constante e acaloradamente sobre futebol e, os outros dois, aguentavam impávidos e serenos.
O fanatismo era de tal ordem que, tanto um como outro, chegavam ao ponto de relatar com algum pormenor a vida dos futebolistas do seus clubes (onde e quando nasceram, onde moravam, que clubes representaram e em que ano, etc., etc.) numa demonstração de grande cultura futebolística.
Pois naquele dia 25 de Abril de 1974, à hora do almoço, quando toda a gente, em silêncio, aguardava com alguma ansiedade novas de Lisboa sobre o que por lá estaria a passar-se na realidade, estavam aqueles dois "fabianos" em acesa discusão acerca, provavelmente, da cor das cuecas que determinado jogador usou no jogo tal, marimbando-se completamente para o que se estava a passar na Capital do Império!
Nesse dia foram-se adensando as suspeitas de que algo de importante se estaria a passar em Lisboa. Aos poucos as notícias foram chegando, mas nada de oficial. Eram transmitidas de boca em boca e, nessa situação, não havia que fiar e continuava-se a combater no mato.
O Brigadeiro Alberto da Silva Banazol, estaria a banhos na Ilha de Bubaque, mas tardava em aparecer.
O General Bettencourt Rodrigues nada dizia.
Começa a "boatice". Que houve um golpe de Estado liderado pelo Gen. Spínola..., que o Gen. Bettencourt estava contra..., que íamos ficar sem reabastecimentos de Lisboa..., etc., etc..
Baixou a qualidade da alimentação... Faz-se um levantamento de rancho... Fazem-se reuniões por tudo e por nada... A confusão é mais que muita...
O Brig. Banazol desaparece... O QG/CCFAG - Amura é cercado e o Gen. Bttencourt preso.
Em Bissau os estabelecimentos são pilhados... É reforçado o pratulhamento nas ruas... A sede da Pide em Bissau corre perigo ...
Sou escalado para Sargento de piquete e, à noite, põem-me uma HK-21 nas mãos e o respectivo pente de balas... Não sei o que hei-de fazer com aquilo... Mandam-me com mais 6 homens fazer segurança à Pide/DGS... Eu sou Amanuense, mas ninguém quer saber... Eu também já não quero saber... Só quero que ninguém me chateie...
E lá vou eu!
Coloco a fita de balas ao pescoço e cruzo-o no peito, qual Pancho Villa liofilizado (podem verificar as semelhanças na foto ao lado, colocando o ponteiro do rato em cima da imagem).
Seguimos de Unimog em direcção ao objectivo - Sede da PIDE/DGS, em Bissau.
Lá chegados, havia que montar o dispositivo de segurança... Começam os problemas... Nas Caldas da Rainha tinha tido uma formação em HK-21 de cerca de ... 10 minutos e recordava-me bem de como colocar a arma com o tripé no chão, mas como se metia o pente, aí é que já era pior..., tinha-se-me varrido completamente.
Um homem nunca se atrapalha:
- "Há aqui algum atirador?"
- "Eu sou!", responde alguém.
- "Então monta lá isso e anda para aqui!"
O equipamento estava montado no meio da ruela que passava por detrás da DGS. Havia agora que colocar estratégicamente o pessoal, e assim fiz:
- "Sentem-se aí nesse canto e façam pouco barulho" (estratégia para não espantar a caça).
Entretanto, como já me estava a dar o sono por ouvir ressonar, levantei-me e fui andar um pouco para perto da HK, não fosse alguém a "gamar", e vi uma caixa de papelão que me deu uma ideia genial!
A HK ali sozinha, montada no chão, não fazia muito sentido. Era conveniente pôr lá um homem a apontar para qualquer lado (o factor psicológico é muito importante nestas ocasiões). Como a arma me tinha sido entregue a mim, parecia-me óbvio que o homem seria eu. Mas eu sou pacifista e, além disso, tinha de me deitar no chão e ia sujar-me todo naquela terra barrenta.
Desfiz a caixa de papelão e fiz uma espécie de tapete que coloquei atrás da HK.
Chamei o atirador e disse-lhe para se deitar que a cama já estava feita.
E ali estava, em todo o seu esplendor, uma segurança com preocupações estéticas, de higiene e de conforto.
E foi neste quadro burlesco que a força que nos veio render nos encontrou, às 4 horas da madrugada, não se tendo registado qualquer incidente.






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