segunda-feira, 29 de abril de 2013

Abílio Magro
Bombeiro (in)Involuntário


Tendo cumprido uma comissão militar na Guiné, entre Março de 1973 e Setembro de 1974, apenas ali passei um Natal; o de 1973.
No dia de Natal era habitual, segundo creio, todas as unidades militares na Guiné entrarem em prevenção a 100%, isto é: toda a gente a trabalhar durante as 24 horas do dia.
Dias antes, na CSJD/QG/CTIG onde eu prestava serviço, iniciaram-se as "conversações" no sentido de definir a contribuição que cada um iria dar para a realização de um convívio natalício naquela noite, o que abrangia toda a gente, incluindo o Chefe (Ten.Cor. Manuel de Moura).
Imaginava um são e alegre convívio, mas toda a noite sem dormir, comendo e bebendo de tudo um pouco (excepto água), afigurava-se-me uma prevenção a rondar talvez os 5%, na melhor das hipóteses.
Se numa qualquer repartição do QG/CTIG esse facto não parecia diminuir muito significativamente a sua "capacidade de defesa", já no mato não se poderia afirmar o mesmo, mas, ainda assim, parece que o convívio nessa noite também por lá se efectuava, a julgar pelos relatos de alguns ex-combatentes publicados neste e noutros blogues.
Seria um Natal diferente, longe da família, é certo, mas onde a camaradagem própria dos militares proporcionaria, certamente, alguns momentos de alegria atenuando minimamente a saudades próprias da época.
Tanto na tropa como na vida civil, um bom desempenho, coragem, grande sentido do dever, e outros atributos que me são característicos e que a minha modéstia me impede de referir, trazem-nos por vezes trabalhos redobrados, já que nos momentos mais difíceis somos os primeiros a ser chamados para a "frente da batalha".
E foi assim que, naquele Natal de 1973, me escalaram para o serviço de Sargento de Piquete.
O Piquete raramente era chamado para qualquer tarefa e limitava-se a estar pronto para o que "desse e viesse", mas originou o meu afastamento do convívio natalício com os meus camaradas e superiores da CSJD.
Mas, se andava algo entusiasmado com a ideia de um Natal diferente passado entre militares, não posso dizer que as minhas expectativas tivessesm saído frustadas, pois acabei por passar uma noite de Natal bem diferente e bem regada, entre militares, população e bombeiros.
Então não é que, a meio da noite, nos colocaram pás e picaretas nas mãos e nos mandaram para o Pilão atacar um incêndio que deflagrara numa tabanca?!
Se com a HK-21 não me entendia lá muito bem, apesar da formação obtida (+/- 10 minutos), imaginem a minha destreza a manusear uma pá, ou picareta sem nunca ter tido qualquer formação, nem tão pouco saber como se puxava a culatra atrás!
- "Os generais devem estar loucos!", pensava eu com os meus botões.
Lá seguimos de Unimog até ao Pilão, armados de pás e picaretas para fazer não sabia bem o quê.
Demoramos algum tempo a chegar ao objectivo já que o Unimog se deparava com algumas dificuldades de manobra dentro do Pilão e a tabanca em chamas se situava numa das extremidades do bairro.
Tivemos de circundar o bairro e, chegados lá, encontramos os bombeiros de Bissau a atacar o fogo que se circunscrevia apenas às travessas que suportavam o telhado de colmo que, entretanto, havia já sido consumido pelas chamas.
Sentindo-me perfeitamente ridículo no comando de um pelotão armado de pás e picaretas, por ali ficamos quedos e mudos na esperança que o breu da noite encobrisse a nossa triste figura.
O pessoal dos bombeiros era todo guinéu e tendo, provavelmente, detectado a nossa caricata presença, resolveu atacar o fogo pelo lado oposto àquele onde nos encontrava-mos e como as agulhetas eram apontadas para as travessas do tecto, a água que não acertava nas mesmas, ia cair direitinha em cima do Piquete, no outro lado da tabanca.
E assim passei o meu Natal de 1973 bem regado, com alguns militares, no meio da população do Pilão e com bombeiros danados p'ra agulheta. (à falta de champagne...!)

Outros pequenos episódios

1 - Guarda de Honra em julgamento militar

Nos tribunais militares os julgamentos eram efectuados com a presença de uma Guarda de Honra e durante a minha comissão na Guiné, apenas uma vez fui escalado para comandar um pequeno pelotão numa "cena dessas".
De camuflado, luvas e cordões brancos, sob uma temperatura a rondar talvez os 40ºC e com alguns 80% de humidade no ar, lá fomos para a sala de audiências que não tinha ar condicionado, mas sim uma ventoinha "gigantola" no tecto.
Quando o Juíz entrava todo de branco fardado, fazendo lembrar um vendedor de gelados que ali bem-vindo seria, a Guarda levantava-se, eu dava ordens de sentido-ombro armas-apresentar armas, "comme d'habitude" nestas ocasiões.
Durante o julgamento permanecía-mos de pé, de mãos quentinhas e com o suor a escorrer por todo o corpo, fazendo-nos sentir sermos nós os verdadeiros réus a cumprir já parte da pena.
Recordo-me que, nesse dia, foram três julgamentos seguidos (era talvez época de saldos).
A situação lá se foi aguentando (que remédio!), mas na hora da leitura da sentença é que a coisa se tornava feia. Todos em sentido enquanto o homem lia os "preliminares" e, quando proferia uma frase semelhante a: "Determino em nome da lei", eu dava voz de apresentar armas e assim permanecíamos até ao fim da leitura que demorava uma eternidade, fazendo com que as armas aumentassem exponencialmente de peso.
No meu caso a arma era uma FBP cujo peso era bem inferior ao da G3 e cujo apresentar d'armas era sobre o peito aguentando-se razoavelmente a posição, mas o resto do pessoal armado de G3, ao fim de alguns minutos já não conseguia manter a arma firme na vertical, tremendo como varas verdes.
De soslaio, apercebi-me que alguns foram aproximando as respectivas coronhas da barriga, acabando por as poisar no cinturão, transformando a Guarda de Honra num cerimonial com pouca verticalidade.
Segundo me recordo, um dos julgamentos referia-se a um soldado metropolitano que, a caminho de uma qualquer patrulha, saltou da viatura e regressou ao aquartelamento, desobedecendo ao Alferes. Este ter-lhe-á posteriormente aplicado apenas um castigo de alguns "reforços à benfica", castigo esse que foi considerado demasiado brando, o que terá originado, também, um processo disciplinar ao Alferes.
Quanto à pena sofrida pelo soldado, não me recordo bem, mas julgo que foi de alguma dureza.
Num outro julgamento o réu era um civil negro, já com algumas chuvas passadas, baixote, descalço (e eu de luvas brancas!) e de uma etnia qualquer que obrigou à presença de um outro militar, também negro, no papel de tradutor.
Não me recordo já de qual o crime cometido por aquele civil, nem da pena a que foi condenado, mas apenas que, após uma pergunta do Juíz, o "intérprete" ter entrado em longa algaraviada com o réu, finda a qual simplesmente respondeu:
- "Ele disse que não"

2 - Certidão de óbito cacimbada

Como referi anteriormente, quando cheguei à Guiné já lá se encontrava o meu irmão Álvaro que prestava serviço na Secretaria do HMBIS e a quem ainda faltava cerca de um ano para terminar a comissão.
Claro que eu, sendo "piriquito fresquinho", fui alvo de muita "música" do "velhinho", nomeadamente com telefonemas sobre os assuntos mais estapafúrdios que se possam imaginar.
Um certo dia encontro num dos processos que me chegaram às mãos uma certidão de óbito que, após a respectiva assinatura, continha mais ou menos, os seguintes dizeres:



Panderonga Parabó Lundó
Médico Anatomopato

Tratando-se embora de uma brincadeira algo tétrica, não deixei de esboçar um sorriso e associar aquele acto mórbido ao cacimbo entretanto já suportado pelo mano Álvaro.
Telefonei-lhe imediatamente para o Hospital e ele desatou a rir à custa da ignorância do "piriquito".
Afinal - Panderonga Parabó Lundó - era o nome de um médico Anatomopatologista, de origem indiana, que prestava serviço no HMBIS.

Ia lá eu adivinhar semelhante tal!






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